David Machado, 36 anos, é licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão, de Lisboa. Mas não foi nessa área que vingou. Em 2005, ganhou o Prémio Branquinho da Fonseca, da Fundação Calouste Gulbenkian/ Semanário Expresso, com o livro infantil “A Noite dos Animais Inventados.” Seguiram-se títulos como “Os Quatro Comandantes da Cama Voadora”, “Um Homem Verde Num Buraco Muito Fundo” e “O Tubarão na Banheira”.

O Observador foi tomar um café com o escritor, conversar sobre as suas últimas publicações e relembrar a importância da literatura infantil.

Este ano já publicaste dois livros infantis, mas nos últimos três anos só tinhas publicado dois romances, “Índice Médio de Felicidade” e “Deixem falar as Pedras”. Porquê é que voltaste agora à literatura infantil?

Eu próprio às vezes também fico surpreendido por terem passado três anos desde o meu último livro infantil, mas a verdade é que queria ter continuado a publicar. Eu continuei a escrever, só que aconteceram várias coisas para além do trabalho da escrita, como por exemplo o querer mudar de editora. Foi um processo um pouco demorado. Eu estava a publicar na [editora] Presença e este livro novo [“Acho que posso ajudar”] saiu na Alfaguara.

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Era para ter saído um livro infantil no ano passado que não era nenhum destes, mas houve um problema com a parte da ilustração. Tivemos de suspender o projecto. Eu não parei de escrever. Foram várias coisas que foram acontecendo ao mesmo tempo. Neste momento, eu tenho várias coisas em stand-by para serem publicadas.

Mas deixaste de parte os romances?

Não, não. Na verdade, vou sempre saltando entre uma coisa [romances] e outra [livros infantis], sendo que os romances obviamente tomam-me muito mais tempo. Normalmente escrevo um ou dois livros infantis por ano. Agora que aconteceu um intervalo de três anos, até foi bom ter surgido este convite da APCC (Associação para a Promoção Cultural da Criança), porque às vezes precisamos de alguém que nos diga: escreve isto. Foi uma coisa muito rápida e eu estava a precisar disso. Telefonaram-me em Outubro e o “Parece um pássaro” saiu em fevereiro. Eu escrevi o texto, o Gonçalo Viana fez as ilustrações e o livro foi publicado imediatamente. Quem me dera que fosse sempre assim, faz-nos andar para a frente.

Foi uma evolução rápida. Em 2005, começaste a publicar…

Na época, escrevia para mim e para tentar publicar. Escrevi “A noite dos animais inventados” para concorrer ao prémio Branquinho da Fonseca, no intervalo do meu primeiro romance, que veio a ser publicado com o título “O fabuloso teatro do gigante”. Por isso foi uma coisa que apareceu por acaso… Esse livro apareceu mesmo por acaso. Eu, na altura, não pensava em escrever para crianças, nem lia livros para crianças.

E como é que começaste a escrever?

Sempre gostei muito de ler e a certa altura, quando entrei para a faculdade comecei a ter alguma vontade de fazer isto [a escrita] de uma forma mais rotineira, digamos assim.  Comecei a pensar que talvez pudesse mesmo publicar um livro. Desde essa altura, sempre tive a noção que se tivesse tempo era capaz de escrever um livro. Não sei se seria um livro para ser publicado ou se as pessoas iam gostar, mas se eu tivesse tempo para pensar, sobretudo para pensar, para me dedicar, eu conseguiria. Isso aconteceu quando eu fiquei desempregado, que eu tirei o curso de economia e ainda trabalhei nessa área. Mas durante dois anos escrevi para adultos e sem conseguir publicar nada. Depois apareceu o regulamento do Prémio Branquinho da Fonseca e consegui. A partir daí consegui publicar os outros livros que andava a escrever.

Sentes diferença quando escreves para crianças ou adultos?

Só há uma diferença no momento em que tenho a ideia. Quando tenho uma ideia, identifico logo se ela vai resultar como uma história para crianças ou para adultos. A partir do momento em que seleciono um dos géneros, não há grande diferença. É tudo contar uma história. E não facilito muito quando estou a contar uma história para crianças, percebo é que a ideia e o universo que consigo criar em volta da ideia vão ao encontro do universo das crianças.

Se estou a escrever para crianças, não penso em nenhuma criança em particular, nem nos meus filhos. Penso em mim quando era criança e para mim isso é mesmo relevante: é uma espécie de psicanálise. Acho que a maioria das pessoas não pensa na sua infância e no significado de momentos e gestos importantes, de memórias, daquilo que sentimos na infância.

E eu através dos livros consigo fazer isso. As histórias que escrevo não são baseadas na minha infância, mas para escrever na voz dos miúdos e tentar perceber o ângulo que os leitores vão achar mais interessante, divertido. Tento recordar como é que eu pensava quando era criança, como me sentia. Só dei conta muito recentemente, há uns dois anos, que é isso que faço desde o primeiro livro.

Achas que existe destaque para a literatura infantil?

Tudo o que envolve crianças tem muito destaque, mas o livro infantil não. Existe muito pouca crítica de literatura infantil. Desde que tive filhos, apercebi-me que tudo o que envolva crianças tem imensa procura, as crianças estão no centro de tudo no mundo. E com a literatura infantil também devia ser assim. Na verdade, os meus livros infantis vendem muito mais que os romances.

Como é ter leitores tão jovens?

Os leitores são mesmo fãs, fãs, no sentido em que ficam mesmo entusiasmados com os livros, com as histórias, com as personagens. Há um fenómeno que passa despercebido a quase toda gente no país, que é a ida de escritores às escolas e às bibliotecas, que às vezes é uma loucura. Os miúdos pedem para eu autografar bonés e braços, e não é que eu agora queira andar a autografar os braços dos meus leitores de romances, mas os miúdos são empenhados, dedicados. É bom sentir essa dinâmica do outro lado, de quem lê os livros.

As crianças são um público mais genuíno?

Muito mais genuíno e muito mais descomplexado. Não têm problemas em chegar ao pé de mim e dizer-me que não gostam da história ou de alguma parte. Isso é bom, e não racionalizam tanto. Às vezes lemos coisas em blogues e jornais a tentar racionalizar demasiado um romance. As pessoas até chegam a ser cruéis. Mas basta dizer que não se gosta.

Qual era o livro infantil teu que gostavas de ter lido em criança?

Meu?
(Risos)
Nunca me tinham feito essa pergunta. Enquanto escritor tenho sempre a resposta preparada, gosto de todos os meus livros. Enquanto leitor de facto pode ser diferente… Já desde miúdo que eu sempre gostei do absurdo e do disparate e todos os meus livros para crianças e para adultos andam à volta disso.  Acho que livros como o “Tubarão na Banheira” e a “Noite dos animais inventados” iriam atrair-me muito. Mas também gosto muito da “Mala Assombrada” que é um livro que mete medo… e mete disparates. Subverte um pouco a relação das crianças com o medo, porque temos um irmão mais velho que tem medo de tudo e temos um irmão mais novo que não tem medo de nada. Lembro-me de ser criança e achar graça a essa espécie de paradoxo e de ter esta boa relação com o medo.

Eras uma criança medrosa…

Lembro-me de certa forma estar consciente que o medo faz parte e que é uma coisa importante.

E o absurdo?

Só sou consciente em relação a isso há muito pouco tempo. Desde que comecei a escrever, se calhar, porque até então era uma relação natural a que tinha com o absurdo. Hoje em dia olho para trás e consigo identificar totalmente que o humor que gosto mais é o non-sense britânico ou que quando leio um jornal atraem-me muito mais as noticias insólitas.  Adoro quando contam uma história que parece impossível, mas só hoje é que percebo de facto que [o absurdo] é um filão para mim.

Como é que é o teu processo de escrita?

Tenho ideias. Sempre gostei de ter ideias, e de sonhar sobre essas ideias, e de especular sobre elas. Tenho sempre muitas. Algumas tomo nota num caderno, outras ficam só na cabeça a marinar. Estou sempre a trabalhar nessas histórias, gosto muito da história da narrativa. Eu raramente escrevo alguma coisa que não seja uma narrativa. Tenho sempre de encontrar uma forma de pegar numa ideia e transformá-la numa narrativa.

Este ano já publicaste o “Acho que posso ajudar”(Alfaguara) e “Parece um pássaro”(APCC). Como é que descreves esses livros?

Para mim são dois livros muito diferentes, desde a ideia inicial à forma como eles surgiram e na forma como foram publicados. O “Parece um pássaro” foi um convite da APCC, que tem uma edição de livros infantis maravilhosa, que acho que muitas editoras deviam invejar. Ligaram-me em Outubro para entregar um texto duas ou três semanas depois porque estavam um pouco apertados com o prazo. E pediram-me para indicar um ilustrador com quem gostaria de trabalhar.

A ideia para a história foi na verdade um pedido da minha filha que andava há mais de um ano a pedir para eu escrever sobre pássaros. Então forcei um bocado as coisas, mas como já tinha dito, isso pode ser bom ou melhor que uma ideia qualquer que tivesse tido há alguns anos. Às vezes os escritores estão muito mal habituados porque fazem, fazemos, o que nos apetece e trabalhamos com o tempo todo do mundo. E por um lado é bom assim, para sermos criativos à vontade. Por outro lado, às vezes precisamos mesmo desta pressão que quase todas as outras profissões têm. E este prazo apertado não foi nada prejudicial, antes pelo contrário: obrigou-me a focar melhor na narrativa…

Que achou a tua filha da história?

A minha filha adorou. Acho que todos ficaram bastante satisfeitos com a história, eu fiquei. Nunca tinha trabalhado com o Gonçalo Viana, mas já escrevi a história a pensar no traço dele. Eu não o conhecia pessoalmente, mas conhecia o trabalho dele nos jornais. Por isso, tinha noção do traço dele, se era mais contido ou mais criativo. Ajudou-me a perceber até onde podia esticar o texto ou se podia deixar mais espaço para ele preencher.

Quais são as próximas publicações?

Tenho um conto infantil que vai ser publicado numa antologia de contos para crianças. Tenho dois livros infantis que vão ser publicados no próximo ano, tenho uma banda desenhada escrita mas que ainda está completamente no início.

E o que estás a escrever neste momento?

Tenho já várias coisas terminadas.  E neste momento estou a começar a escrever um novo romance.

Se tivesses de escolher um livro que te marcou, qual escolhias?

É muito difícil escolher um romance, mas eu reli há uns meses um livro que me tinha marcado bastante há 15 anos ou mais. Agora marcou-me de uma maneira diferente e ainda bem. Continuo a gostar muito do livro “À espera do Centeio”, do J.D. Salinger, também porque hoje em dia comecei a voltar-me novamente para a adolescência, não a minha, mas a temática da adolescência. Gosto muito destes romances ou filmes que os americanos chamam de coming of age, fazem a passagem da idade adolescente para a idade adulta. De certa forma, a personagem cresce.

Ainda te sentes nessa fase?

Não, não. Mas gosto muito desta ideia de que a certa altura na nossa vida nós crescemos e tornamo-nos adultos, mais responsáveis, assumimos os nossos valores, de alguma forma aprendemos a estar mais conscientes daquilo que somos. Fico sempre muito surpreendido que não haja mais pessoas que falharam nisto, que a maior parte de nós torna-se pessoas mais ou menos boas, correctas, honestas. Olhando para trás, para a minha adolescência e para os amigos que tinha então e para os adolescentes de hoje em dia, parece-me quase impossível que as coisas vão dar certo, que estamos numa fase de tanta descoberta e cometemos tantos erros, ultrapassamos tantos limites, como é que a certa altura, damos um passo atrás e pensamos: ok, já aprendi e não vou ultrapassar mais limites. No “À espera do centeio” é isso que acontece.