“Olha, sei lá como é que surgiu o nome”, ri-se quem nos atende o telefone. “A patroa é que sabe”. Vem a patroa falar. Repetimos a pergunta: porque é que escolheu o nome de Rei das Tintas para a sua empresa? “Muito simples, sabe quem é o leão na selva? Foi assim”. Mas o mercado das tintas em São Domingos de Rana será uma selva? Pelo contrário, explica Paula Pascoal, a patroa de uma empresa especializada em fornecimento de tintas para o ramo automóvel. Na zona, garante, não há nada do género.

“Então são reis indisputados?”, perguntamos.

“Exatamente”, responde com a lentidão própria de quem sente orgulho naquilo que faz.

Os negociantes que se auto-intitulam reis, com quem o Observador falou, são geralmente assim. Tratam o produto que vendem por tu, construíram uma clientela que já consideram ‘amigos’ e, apesar de alguma resistência inicial que por vezes demonstram, o seu discurso raramente esconde uma ponta (ou um iceberg inteiro) de orgulho.

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É o caso de José Santos, da Rei das Meias, em Lisboa. “Este é o famoso rei das meias que torna bonitas as pernas feias!”, canta, recitando o slogan da loja, instalada no Largo Bordalo Pinheiro desde 1929. Este terá sido muito provavelmente o único estabelecimento de ‘reis’ que alguma vez teve verdadeiros monarcas como clientes. “Até os reis de Espanha vinham cá comprar meias”, conta José Santos, que nunca viu membros da monarquia ao vivo, porque trabalha na loja só desde 1981 e a família real espanhola ia lá quando passava férias no Estoril, na década de 1940.

A loja Rei das Meias começou por ser uma casa de venda de brinquedos, mas a dada altura os donos decidiram especializar-se exclusivamente no vestuário para pés. “O impacto era maior. As pessoas diziam ‘Vamos ao Rei’ porque aqui encontravam centenas de variedades de meias”, explica José Santos. Ainda hoje, relata, vêm pessoas de todo o mundo de propósito comprar ali, algumas delas bem conhecidas. O Papa Paulo VI não foi uma delas, mas há um retrato seu nas paredes, assinado pelo próprio, pedido pelo dono original da loja para abençoar a casa.

A sucessão

A questão sucessória é uma das principais preocupações dos reis mesmo antes de chegarem ao trono. Os filhos do casal real e os filhos destes são recebidos com entusiasmo e alívio, como aconteceu com a primeira gravidez de Letizia, com o nascimento de George Alexander Louis, filho dos príncipes William e Kate de Inglaterra e com muitos outros reinados por esse mundo fora. Também nos negócios a morte ou abdicação do monarca no poder leva à criação de uma dinastia. Algumas são continuadas pelos legítimos sucessores dos reis originais, outras ficam nas mãos de plebeus.

O Rei das Tintas é um negócio de família. “Fundei a empresa com o meu pai, ele é que era o rei, depois sucedi-lhe no trono”, conta Paula Colaço, que agora é conhecida como a ‘rainha das tintas’, um título que, diz, não se importa nada de usar. No Rei das Meias, deu-se o contrário: o dono original não tinha filhos, a loja passou para um sobrinho, que também não tinha filhos e, por isso, acabou por chegar ao pessoal, caso de José Santos, plebeu que subiu a pulso por entre o mundo das lycras e do algodão, qual Letizia do Chiado.

Maria Antónia Dias, por seu turno, é um caso especial. A dona do Rei dos Caracóis, em Algés, tem estabelecimento montado há 36 anos. É um espaço relativamente exíguo, com poucas mesas, mas muito procurado por uma clientela fiel. “Isto já era do meu marido, mas era só uma ginjinha”, conta. Depois, uns amigos “começaram a trazer caracóis para umas patuscadas”, ela aprendeu a fazê-los à moda do Algarve e a casa ganhou fama. “Comecei a especializar-me naquilo” e os clientes não paravam de chegar, comendo os caracóis “em cima de umas tábuas e caixas”, recorda.

A fama espalhou-se de tal forma que até o ‘rei’ leão Sousa Cintra se tornou presença habitual – quando era presidente do Sporting levava lá jogadores do clube e hoje mantém a preferência pelos caracóis de Maria Antónia, que, apesar de a casa se chamar Rei dos Caracóis, é quem manda ali – um poder que faz lembrar Isabel II. E tem uma coroa para prová-lo. “Já me fizeram aqui uma coroa de caracoletas”, ri-se, explicando que, depois de comidos os bichos, um artista plástico levou as carcaças para casa e colou-as num círculo. E, de facto, Maria Antónia Dias faz jus ao título: diz que come caracóis todos os dias do ano (mesmo no Natal) e nunca se cansa.

No campo da restauração, Maria Antónia está longe de ser a única monarca. Aliás, é neste setor que provavelmente se encontram mais reis. Só em Quarteira, no Algarve, o Observador descobriu dois: o do Churrasco e o do Peixe Assado, este último tornado soberano por aclamação popular. “Os clientes adoravam o peixe” do Sr. Ruben, que tinha um restaurante na mesma rua chamado Rodízio de Peixe, conta o próprio. Quando mudou de espaço, para 200 metros mais acima, o povo “exigiu” a alteração do nome da casa para Rei do Peixe Assado (no carvão) e o título foi bem dado, diz Ruben com convicção.

Também no caso do Rei do Bacalhau, na Rua do Arsenal, em Lisboa, “foram os clientes que deram nome à casa”, explica Fernando Dias, atual monarca, genro do primeiro rei, o Sr. Ramalho. “As pessoas começaram por levar grão e arroz e diziam ‘ai se tivesse um bocadinho de bacalhau…'”. E tinham. “Não havia fartura, mas sempre houve bacalhau para os clientes. Só vendemos bacalhau bom”, diz. E hoje é por isso que a loja é conhecida e o nome é mesmo marca registada – “em Portugal ninguém mais pode ter” nome igual, pelo menos no segmento de venda a retalho do peixe nórdico.

Tentámos ainda debalde contactar o Rei dos Queijos, banca afamada do Mercado da Graça, em Ponta Delgada, São Miguel, Açores. Quem nos atendeu o telefone apresentou-se como “esposa do rei”, mas disse logo que o trono já tinha sido entregue ao filho – com quem não foi possível falar. Tal como em Espanha, com a proclamação de Felipe VI na manhã desta quinta-feira, também a dinastia dos queijos açoreanos considerou ser altura de dar lugar a uma nova geração. Com uma diferença: apesar de reis, nenhum daqueles com quem falámos disse ser monárquico.

(Bom, não podíamos falar de reis sem mencionar os reis dos cromos, de que já aqui falámos há umas semanas)