Uma coluna de opinião de mãe para mães. Sofia Anjos teve a pequena Laura há 15 meses. Os primeiros tempos de maternidade foram particularmente difíceis, pelo que Sofia procurou na escrita uma forma de escape: há mais de um ano que tem um espaço de opinião num jornal nacional. Na secção Life&Style do Público fala todas as semanas sem medos (e sem rodeios) sobre o lado menos “cor-de-rosa” da maternidade. É das poucas vozes nacionais a fazê-lo, mas lá fora a tendência é para desmistificar os ideais de perfeição associados à maternidade: em Espanha existe o Club de las malas madres e nos Estados Unidos da América o blogue Her Bad Mother já esteve entre os 25 mais influentes escolhidos pela revista Time.

As crónicas “Mães há muitas” têm gerado polémicas, muitas. Uma das maiores foi em torno da amamentação, cujo texto “As mães não se medem às mamadas” recebeu cerca de 40 mil leitores e mais de 70 comentários. Semanalmente há fiéis seguidores mas também ofensas da parte de quem lê, como “você não devia ser mãe” ou “você não devia ter útero”.

Sofia Anjos aborda, num tom irónico, temas mais e menos polémicos capazes de originar um sem-fim de respostas e debates acesos. Apesar disso, confessa que escreve apenas por gosto e em tom de desabafo. Não pretende ser provocatória, embora admita que há textos com um registo mais intenso. Sobretudo isto: não quer ofender ninguém. Ao Observador explica por que razão “ser mãe é a tropa das mulheres” e que um pouco de humor não fazia mal a ninguém, em especial numa sociedade apelidada de “conservadora”.

 

– Por que começaste a escrever as crónicas?
Estava de licença de maternidade em casa e sempre gostei de escrever. Estes primeiros meses foram realmente duros a nível psicológico e, por isso, escrevia para mim. Houve um período em especial, o segundo ou o terceiro mês, em que a minha filha teve cólicas muito fortes — o mais difícil na maternidade é o choro, é só isso, tudo o resto faz-se. Um choro interrupto dá cabo dos nervos e eu até acho que lido com as coisas dela de uma forma bastante fácil, organizada e descontraída q.b. Foi aí que escrevi o primeiro texto de todos, uma espécie de catarse. Partilhei com o meu marido e com uma grande amiga que é jornalista no Público. Ela gostou — nem sequer é mãe –, achou interessante e mostrou à editora dela que perguntou se se podia publicar. O primeiro texto foi o “Ser mãe é a tropa das mulheres” e teve 60 mil leitores. Claro que tive comentários muito bons e comentários muito maus, mas isso é mesmo assim. Mas acho que foi sincero, não foi escrito para ser lido ou publicado. Acho que havia ali alguma ingenuidade que deixei passar e foi isso que fez com que as pessoas se identificassem.

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“Ser mãe é a tropa das mulheres, com recruta mínima de três meses. Cresce a barriga, encolhe a barriga, mas não para o mesmo lugar de antes. Tira a mama, recolhe a mama. Volta a tirar a outra mama, volta a recolher. Dorme, acorda, esteriliza biberões, muda a fralda, mantém-te acordada, amamenta, lava a roupa bolsada, põe a chucha, mantém-te acordada, não-café-não, embala antes a miúda, não-sentada-não, levanta-te, embala de pé, canta, abana-te o mais que puderes, de preferência ligeiramente curvada que ela adormece mais rapidamente.” Crónica “Ser mãe é a tropa das Mulheres”

– De que forma é que a maternidade mudou a tua vida?
Não fiz uma mudança tão radical quanto isso. A Laura foi planeada com vontade e já estava a contar que muita coisa fosse mudar. Claro que há coisas que tens de reajustar, mas não é aquele drama de ficares fechada em casa. Felizmente consegui arranjar espaço para tudo, mas também sei que sou muito privilegiada: tenho uma casa como deve de ser, no sentido de espaço, tenho uma empregada duas manhãs por semana e tenho duas avós disponíveis.

– Mas chegaste a escrever uma crónica que aborda a falta de vida social quando se é mãe…
Penso que o primeiro e o segundo ano são realmente muito difíceis para a mulher. Agora sim, neste momento [passados 15 meses] sinto que tenho tudo controlado e consigo fazer mais ou menos aquilo que quero, com alguma antecipação e organização. Mas não acho que seja uma mudança que sentes de um dia para o outro. Vai-se mudando: não és mãe quando o bebé nasce, vais sendo mãe. Hoje em dia gosto mais da Laura, antes não gostava tanto. Não tive aquela epifania que as pessoas têm de o bebé, quando nasce, ser o maior amor da nossa vida e virem-nos as lágrimas aos olhos. Não senti isso. É uma coisa que foi crescendo. É um cliché: quando nasce um filho, nasce uma identidade. Essa é que é a grande mudança da maternidade e da paternidade (para não dizerem que não falo dos pais). Conheces-te enquanto filha, amiga e profissional, não te conheces como mãe antes de o ser. É tão simples quanto isso. É uma coisa que vais descobrindo: há outros divertimentos, medos e maneiras de reagir. É isso que nos vai surpreendendo.

– Alguns textos geraram polémica. Achas que abordas temas e opiniões sensíveis na maternidade?
No meu grupo de amigas falamos todas à vontade e dizemos estas coisas. Mas depois quando passas para a barreira de publicar… é estranho. Acho que cada pessoa tem o seu meio e no meu meio tenho pessoas relativamente tolerantes com várias perspetivas. Não sinto isso no dia-a-dia, mas quando publico vejo que há esta distância e vejo reações que me surpreendem.

“Dei de amamentar três meses. Isso coloca-me num meio-termo, não sou boa nem má, fico ali em purgatório matriarcal até decidirem que juízo dar a esta média. Contas feitas, quem amamenta seis meses é uma boa mamã, quem amamenta dois meses é uma mamã menos boazinha. As que ultrapassam os seis meses são profissionais e as que ultrapassam um ano são as minhas preferidas, são as mamãs prodígio.” Crónica “As mães não se medem às mamadas”

– Que tipo de reações?
Lembro-me de uma miúda nova — via-se pela fotografia do Facebook — que dizia claramente que o papel da mulher era ficar em casa e tomar conta do marido. Como é que uma miúda de 20 e poucos anos diz isto hoje em dia? Tu vês comentários que são o reflexo do que, na realidade, são as mães, os pais, os amigos… Vês muitas pessoas novas, que não são mães nem pais, a fazer comentários. Eu não acho que esteja a dizer nada de extraordinário, são banalidades, estou só em desabafo, ao meu jeito e na minha visão. Acima de tudo, acho que os primeiros tempos da maternidade são realmente difíceis e cada um passa da maneira que tem de passar, com as suas ideias e valores. Cada um faz o seu melhor, disso não tenho dúvidas. A questão é que há uma ideia romantizada do que é uma mãe e quando se foge a isso, ou quando uma pessoa assume que está cansada…. [Para mim] é uma coisa normal, mas brincares com isso…

– Porque é que achas que isso acontece?
Há duas questões. A primeira, que me surpreendeu mais, é que as pessoas não sabem distinguir um cronista de um jornalista, começa por aí. Além disso, não conseguem distinguir o que é um tom irónico de uma opinião mais séria. Levam as coisas à letra e não percebem o género literário. Considero-me observadora da experiência da maternidade e tenho algum insight sobre o tema. Pesquiso um pouco na Internet, mas isto é uma coisa perfeitamente lúdica. Todos os blogues que vejo de maternidade são muito sérios; os que têm humor é um humor cor-de-rosa com o qual não me identifico. Depois, são patrocinados por marcas. Não é um universo que tenha muito que ver comigo. Pode ser informativo e valioso, mas é uma coisa ao estilo “clube de mamãs”. Não me identifico com isso porque acho que é um pouco… aborrecido.

– Quais foram os temas mais polémicos e quais os piores comentários que já recebeste?
Há muita gente que já me disse “você não devia/merece ser mãe” ou “você não devia ter útero”. Diria que os comentários mais ofensivos estão relacionados com o texto da amamentação. Eu dei de mamar até aos três meses, mas acho que cada um faz como quer. Não é por não escolher dar de amamentar que se é má mãe. Temos de respeitar, é como quem não quer ter um filho. São coisas que a sociedade não engole e que são os grandes temas da maternidade.
Há um tema ao qual achei muita piada e foi dos mais polémicos, sobre os pais digitais serem chatos — talvez o tom estivesse um pouco mais agressivo. Tinha que ver com o Facebook e a publicação que os pais fazem de fotos e frases do filho. Acho que toquei num calcanhar de Aquiles. Não sei até que ponto esses pais têm nos filhos a única coisa de valor na vida. O perfil do leitor ofendido… não é uma questão de ser católico ou de direita. Sim, há muitas pessoas conservadoras, este é um país conservador em relação à maternidade, mas as pessoas estão muito zangadas com a vida. Sinto muito um descarregar em cima de mim e dos meus textos. Posso não saber falar de política ou de futebol, mas de filhos… Todos sabem falar de maternidade.

“Não há paciência para o tráfego parental que circula na rede. Posts no facebook: “A minha gordinha já gatinha.” Seca. “Hoje faz dois anos que nasceu o meu amor!” Mais seca. “O Manelinho vestido de calimero!” Se fosse a ti não o vestia assim. “Acordei a ouvir que sou a mãe mais bonita do mundo.” E acreditaste?
Há mães e pais que deviam ter um número limite de posts parentais. Porque entopem a cronologia com fotografias ou frases abebezadas proferidas pelos geniozinhos que têm lá em casa. Chega a dar medo de tocar no ecrã e sentir a baba escorrer pelos dedos.” Crónica “Os chatos dos pais digitais”

– Já te sentiste ofendida por alguns comentários?
Já, claro que sim. No início, sobretudo na primeira e segunda crónica, até porque nunca tinha feito isto. Não tinha a noção do feedback que ia ter. As pessoas são malcriadas, há ofensas enormes. Depois comecei a perceber em comentários de outros artigos que as pessoas são assim. Era uma realidade que desconhecia. Tenho muitas pessoas que me seguem e, mesmo não gostando, estão lá todas as semanas para me ler: acho que há alguma identificação, apesar de não assumida. Mas também há muita gente que se identifica e eu tenho tido comentários muito interessantes em relação a isso, com pessoas que me chegam a agradecer.

– Sentes que, no geral, as pessoas evitam falar das coisas menos boas da maternidade?
As coisas são feitas de sentimentos bons e maus. Existe algum pudor, eu percebo, a nossa vida privada é nossa. Mas isto não é assim tão cor-de-rosa. É maravilhoso, mas há uma parte que realmente é dura. Acho que se embeleza um pouco a coisa.

– O que faz falta quando se fala em maternidade?
As pessoas não têm muito humor. Faz falta sentido humor e leveza na maternidade. Eu não sou humorista, de todo, mas tenho uma visão mais irónica das coisas. Como é difícil, ou tu levas a coisa um pouco a rir ou então… As famílias têm muito pouco humor.

 – Em Espanha foi criado o Club de Las Malas Madres e nos Estados Unidos existe o blogue Her Bad Mother, que já esteve entre os 25 mais influentes segundo a revista “Time”. Ambos os projetos abordam o conceito de “má mãe”, querendo com isso desmistificar os ideais de perfeição associados à maternidade. Alguma vez ouviste falar do termo?
Sim, já tinha ouvido falar, no contexto de temas associados à maternidade, nomeadamente o da amamentação. Mais como adjetivo face a algumas atitudes que não são tão consensuais. Não existem más mães. Todas as mães são boas mães, isto no geral e dentro da personalidade e valores de cada um. A crónica desta semana tem o título “Mães unidas jamais serão vencidas”. As mulheres são lixadas umas para as outras e a questão é exatamente essa. A tua própria mãe, se preciso, vai fazer algum comentário.

“Somos um país de mentalidade madrasta para com as mães. Como se houvesse uma única mãe, perfeita e preferida, a minha e mais nenhuma. As outras são todas enteadas pois não limpam bem os narizes dos filhos. E queixam-se, essas desavergonhadas, de que têm sono, cansaço, pés inchados.” Crónica “Mães unidas jamais serão vencidas” 

– O pai sofre tanto como a mãe com o nascimento de um filho?
Acho que quem sofre mais, sem dúvida, é a mãe. Não é sofrer no mau sentido, mas a mulher começa a viver a maternidade mais cedo, até antes de ter o namorado e o marido. As mulheres têm muito esta coisa romantizada de um dia ter filhos. Nós já brincamos às bonecas, às casinhas. Depois há a pressão social e a idade. Quer dizer, há um grande estigma em relação à mulher. Tenho muitos homens que se queixam de não ter protagonismo. Se o querem, que o façam. Eu estou aqui para falar das mães. Fizemos um grande caminho para deixar de ser só mães, para ir trabalhar, portanto se eles querem ser vistos também como pais, façam o caminho deles. Claro que todos os sentimentos são inerentes aos dois, mas faço isto do ponto de vista de uma mãe porque é isso que sou. E mães há muitas.