Paraíso ou inferno? O que é viver com filhos? No final de outubro, Susana Almeida Ribeiro, ex-jornalista, emigrante e mãe há relativamente pouco tempo, escrevia no jornal Público uma crónica a propósito da disparidade de hábitos entre pessoas com e sem filhos. O texto angariou mais de 400.000 visualizações e cerca de 1.200 comentários, desde os que concordavam com as situações descritas aos que as questionavam — “As pessoas sem filhos anseiam por sexta-feira. As pessoas com filhos temem-na (…) Ao sábado à noite, as pessoas sem filhos vão jantar fora, ao cinema e a um bar. As pessoas com filhos vão à cozinha aquecer restos no micro-ondas, veem meio episódio de uma sitcom e adormecem no sofá”.

Posto isto, será que é mesmo assim? À procura de uma resposta, o Observador recolheu testemunhos de pessoas com e sem filhos para perceber melhor de que forma diferem as rotinas entre os casais com e sem obrigações parentais.

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Maria José Santos Garcia e o marido Filipe Tavares são pais há 18 meses e é a pequena Helena quem lhes ocupa o tempo quando não estão a trabalhar. “A partir das 18h30 a minha vida fica limitada”, explica Maria José ao Observador. Tanto ela como o companheiro gerem empresas próprias, vivem a cinco minutos da baixa do Porto e têm a sorte de ter família imediata a viver no mesmo prédio, caso contrário admite que não saberia como gerir a vida. Vai fazendo o que pode: os jantares de sexta-feira à noite foram substituídos por almoços em dias da semana, quando têm a oportunidade de folgar do trabalho e experimentar menus executivos, e os restaurantes intimistas deram lugar aos que têm fraldário e cadeira própria para a pequena Helena.

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Cristina Lima e António Lopes também vivem na área do Grande Porto. Estão juntos há cerca de dez anos e não têm filhos. Jantar fora implica fazer uma escolha que inclua gostos distintos — ela não come carne há 12 anos e ele prefere seguir uma dieta mais saudável. Não gostam do estilo gourmet e preferem espaços com peixes grelhados. “Fomos a um restaurante há pouco tempo que tinha muitas pessoas e crianças. Havia imenso barulho, pelo que não é propriamente a nossa preferência”, conta Cristina Lima ao Observador. Dançar e ir beber um copo à baixa do Porto, mesmo quando o companheiro não pode, também é uma opção.

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Ir ao supermercado com a filha é considerado uma verdadeira “odisseia”, diz Maria José Santos. “Ela aguenta pouco tempo no carrinho e quer andar a explorar tudo, razão pela qual demoramos mais tempo porque temos de estar concentrados nela. A solução passa por levar uma lista bem definida, respirar, e tentar sair dali o mais depressa possível, caso contrário ela começa a ficar irrequieta“, explica Maria José.

Joana Pratas, 33, e João Nápoles, 39, admitem, à partida, que foi o facto de se terem mudado da cidade para a aldeia que mais alterou os hábitos enquanto casal — trocaram Lisboa e Porto, respetivamente, pelo norte do país, onde vivem com a filha de 21 meses. Onde Joana sente mais mudanças é, sobretudo, no ato de compras: “Deixei de comprar coisas para mim, o foco virou completamente. E quando vou a Lisboa escolho, por norma, o bairro de Campo de Ourique porque é muito focado em crianças”.

Cristina Lima e António não têm o hábito de ir às compras: “É coisa que nenhum dos dois gosta de fazer, seja para a casa ou para nós. Nem gostamos de centros comerciais”. O que lhes interessa é alimentar as coleções nas quais investem tempo e dinheiro (DVDs, CDs e livros), sendo que as aquisições são feitas, sempre que possível, através da Internet.

“Gosto de estoirar o ordenado em sapatos sem pesos na consciência”, diz Patrícia Marques, de 26 anos e a viver com o namorado há três em Lisboa, também sem filhos. O dinheiro que gasta em compras vai, sobretudo, para o que gosta e lhe apetece. Em relação às idas ao supermercado, o cenário muda: “Se formos juntos normalmente cingimo-nos ao plano (lista de compras), se formos separados ele traz para casa coisas que considero desnecessárias, como cerveja e outros itens que já temos, e eu quero tudo o que seja saudável”.

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Maria José Santos explica que tem a televisão sintonizada na Baby TV sempre que a filha Helena está acordada, cujas músicas diz serem “a banda sonora das nossas vidas”. E quanto aos bonecos animados? “Conhecemos todos. Ela adora o Noddy, o Henrique, o gato comilão — é tão ridículo, o enredo é sempre o mesmo… E descobriu agora o Panda. A ginástica que faço é a dançar as músicas do Panda. Aquilo é um festival lá em casa“. Filmes só na grande tela, o que acontece raras vezes. “Desde que ela nasceu fomos duas vezes ao cinema. Mas mesmo em casa, adormeço a ver filmes. A partir das 23h já não existo”.

Apesar de não serem pais, Cristina e António admitem conviver com os filhos dos amigos, pelo que reconhecem nomes da cultura infantil. “Comecei a ouvir Xana Toc Toc em casa das minhas amigas que têm filhos, onde canal de televisão que está ligado é sempre o Panda. E recentemente soube do fenómeno da Violetta porque uma amiga pediu-me um bilhete para o concerto”. As idas ao cinema acontecem nas folgas do namorado e por norma implicam filmes de animação, mas também longas-metragens independentes, no caso de Cristina, e de ficção científica, no caso de António. “Recentemente vimos o último filme de David Fincher, Em parte incerta, e o do Anton Corbijn, Um homem muito procurado“.

Joana Pratas e João Nápoles não se lembram do último filme que viram no cinema.

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“Às sete da manhã já estou a pé para ficar pronta antes de ela acordar. Caso contrário, é para esquecer”, conta Maria José. “No infantário pedem-nos que ela esteja lá até às 09h30”.

“Deixei de dormir até tarde e durante largas horas! Agora, deitar cedo ou tarde significa sempre levantar cedo… Ultimamente às 07h30, porque a Teresinha já não volta a pegar no sono!”, confirma Joana Pratas.

Quando não está a trabalhar, Patrícia Marques acorda tarde, às horas que lhe convier e faz… “o que apetece”.

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A vinda da filha de Joana Pratas pesou na rotina de sono da mãe e no vício do ginásio do pai, do qual já não dá conta. Ambos deixaram de viajar pelo país, como faziam em tempos, e passam agora a maior parte dos fins de semana com a família (pais, sogros, tios e primos). Mas ainda continuam a existir momentos de descontração: “Vamos passear com ela e fazemos mais atividades ao ar livre”.

Cristina e António têm mais tempo livre para realizar caminhadas e sessões fotográficas: “Fazemos as nossas próprias maratonas fotográficas e ainda no domingo passado andámos a fotografar árvores, em parques e jardins da cidade. É coisa para durar uma manhã ou uma tarde toda”.

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“No nosso caso não é uma questão de região, mas sim de género. Eu sou mais destravada”, conta Cristina ao Observador, que confessa dizer algumas asneiras no dia a dia.

Já Maria José esclarece que não tem o hábito de falar “de forma menos própria” e diz ainda que Helena, com um ano, já fala imenso. “Ela tem uma linguagem muito desenvolvida e nós não usamos diminutivos, não gostamos”.

Passar sem asneiras é possível, “tirando se me cair uma pedra em cima do pé, conseguimos controlar-nos relativamente”, explica Patrícia Marques. “Mas pelo que me tenho apercebido [do convívio com casais amigos que têm filhos], mais importante do que asneiras são os assuntos ‘sérios’, tipo ‘o Pai Natal não existe’. Eles ouvem t-u-d-o. Não adianta falares ao ouvido da tua amiga sobre a última noite escaldante ou a última bebedeira que apanhaste. Eles vão ouvir e — pior — reproduzir normalmente na pior altura”.

E se na rifa calhar um romance com crianças à mistura?

A Maria Vieira, quase a chegar aos 30 anos, não lhe passava pela cabeça namorar com um pai de dois, mas foi o que aconteceu há sensivelmente dois anos. Não vivem juntos, mas partilham a rotina com as crianças nas semanas em que a pequena está entregue ao pai, dez anos mais velho do que ela. “Ao início tive imensas reticências, não pelos filhos mas pela estrutura familiar. Não imaginas que vais namorar com uma pessoa com filhos. Adiei sempre conhecê-los. É pior do que conhecer os pais dos namorados”.

Passar o dia de folga com duas crianças significa mudar os horários e as prioridades: “A partir do momento em que estamos os quatro, elas são a prioridade. (…) Quando vão dormir a sesta, a tarde fica completamente cortada, mas aí já aproveitaste bem a manhã”. O casal nunca foi jantar fora com as crianças, pelo que o restaurante também nunca foi escolhido em função dos mais novos. Tal acontece apenas à hora do almoço: “Aí os restaurantes já são escolhidos consoante o espaço e uma área destinada a brincadeiras”.

Maria Vieira ainda não decorou os nomes das personagens televisivas que acompanham os filhos do companheiro, mas sabe que envolve “piratas, uma miúda que é medica e, claro, Mikeys e Minis”. Os dias são mais intensos, assegura, e o barulho uma constante. “Não sei se dá vontade de ser mãe, mas isto ajuda a desmistificar muitos dos conceitos que tinha em relação à maternidade. Afinal, não é assim tão difícil como pensava”.