Um gajo. Todos o podemos ser para alguém. Verdade mesmo. O dicionário assim nos diz: “Qualquer pessoa cujo nome se desconhece ou quer omitir.” A palavra é informal. Ouve-se em cafés, no autocarro, em conversas descontraídas ou com amigos. E agora também se ouviu da boca do selecionador nacional. Fernando Santos tinha um plano para o jogo contra a Arménia: queria “três gajos na área” e “um gajo a cruzar” para lá a bola. Sempre.  Era isso que o treinador “gostava mesmo de ver”. E o gajo que começou por cruzar, muito, até era pouco ou nada conhecido.

Portugal: Rui Patrício; José Bosingwa, Pepe, Ricardo Carvalho e Raphäel Guerreiro; Tiago, João Moutinho e Danny; Cristiano Ronaldo, Nani e Hélder Postiga.

Arménia: Berezovski; Hovhannisyan, Haroyan, Arzumanyan, T. Voskanyan e Hayrapetyan; Mkhitaryan, Mkrtchyan, Edigaryan e Ghazaryan; Movsisyan.

Foi logo ao segundo minuto. Raphäel Guerreiro recebe a bola na esquerda, trocou dois passes com Danny e o último deixou o miúdo mostrar aquilo que bem dizem dele: atirar a bola para a área. A primeira até saiu bem, mas a cabeça de Ronaldo não acertou na bola. Era por ali, pelo pé canhoto do “gajo” novo, do luso-francês com um trema, aquele diacrítico esquisito, no nome, que a seleção nacional começou por tentar coisas. E Raphäel não tremeu.

Ele avançava, recuava, sprintava e era procurado pela bola. E pelos companheiros. Até metade da primeira parte, era por ali que Portugal atacava. E o miúdo, nascido e criado em França, não tremia. Ao contrário da defesa arménia, que aos 7’ deixava Tiago cabecear sozinho uma bola, após livre de Nani e, aos 11, só ao quarto ressalto pontapeava para longe a bola, num canto. Os vacilos arménios, a defender, eram frequentes. Sim. O problema é que surgiam apenas quando os portugueses cruzavam para a área a partir de uma bola parada.

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Porque a atacar a história era outra — tremiam pouco, muito pouco. Sobretudo Henrik Mkhitaryan, a versão arménia de um craque, do tipo de jogador a quem, no balneário e antes do jogo, os treinadores dizem para os outros dez passarem a bola quando as coisas apertarem. Só podia, porque a equipa fazia-o uma e outra vez. Foi ele que, aos 15’, apanhou uma bola à entrada do meio campo, arrancou, colocou dois homens de Portugal em câmara lenta e só parou quando Ricardo Carvalho o derrubou à entrada da área. Falta, livre, remate do mesmo Mkhitaryan e defesa complicada de Rui Patrício.

Quando a bola estava com a seleção nacional, o plano era óbvio: Tiago e João Moutinho, ao centro, recuavam para, à frente, ficarem com pelo menos três homens ao meio e dois nas alas, prontos para receberem passes. Fazia sentido — muitos homens na frente, sempre a mexerem, e muitos destinos para a bola. O problema, outro, é que estavam no meio de dez arménios que se colavam a defender. Por isso, Portugal acabava muitas vezes no que Fernando Santos queria — ter gajos a cruzarem a bola.

Foi isso que, aos 20’ e 31’, deu dois remates a Danny, que dois defesas intercetaram à frente da baliza. Igualzinho. E foi também o jogador do Zenit que pelo meio, aos 22’, caiu na área e colocou o Estádio do Algarve a clamar por um penálti. Nada feito. Um minuto depois apareceu a melhor hipótese que Portugal teve para marcar até ao intervalo — a arménia perdeu a bola numa saída para o ataque, Moutinho ganhou-a, passou-a logo para Ronaldo que, na esquerda da área, pedalou uma vez (passou o pé por cima da bola) e fintou um defesa, mas rematou contra as mãos de Berezovski.

Quatro minutos depois, os portugueses ficaram parados e quase tudo acabava mal. Moutinho, à entrada da área arménia, chutou na relva, caiu e berrou. O árbitro nada apitou. Mkhitaryan apanhou a bola, arrancou, e na área soltou para Hovhannisyan, cujo remate foi parado por Patrício, à rasca. Era assim, a tremer, que a seleção nacional ia descansar para o balneário.

De lá saiu um pouco diferente. Voltou ao relvado de costas voltadas para os cruzamentos. Tiago e Moutinho continuavam a formar um casal no centro, sim, mas a bola chegava mais vezes a quem estava à sua frente. E quando o fazia, a prioridade parecia estar nos passes curtos, nas tabelas, no toca-e-vai buscar à frente. Danny e Nani, sobretudo, insistiam nisto. Os arménios, porém, pouco se deslocavam. E perigo foi coisa que só apareceu aos 58’ e, lá está, quando outro “gajo” decidiu cruzar. Foi José Bosingwa, um velho conhecido, que não aparecia na seleção desde novembro de 2010 (no 4-1 à Espanha), que atirou a bola em direção à cabeça de Danny, que a cabeceou à barra da baliza arménia.

Depois, o jogo amainou. A Arménia parecia conformada, mais encolhida e reservada na altura de contra-atacar. A bola era companhia quase exclusiva da seleção nacional. Mas havia ressaltos, maus passes ou um pé adversário a cortar qualquer jogada que se aproximava da área contrária. Nada resultava. Nem um penálti aparecia quando, aos 63’, a bola tocava no braço de Voskanyan, dentro da área. Nada agitava as coisas. Nada. O jogo parecia ser como a idade — à medida que envelhecia, mexia-se menos.

Até que entrou Ricardo Quaresma.

Aconteceu aos 70’. Saía Danny para aparecer o homem das trivelas, das fintas, da euforia nas bancadas. Sobretudo, era outro “gajo” habituado a cruzar. E a fazer tremer os outros. Demorou três minutos a fazê-lo, quando decidiu tabelar com Nani e libertar-se na área, logo na primeira vez que tocava na bola. Quaresma cruzou, o guarda-redes desviou, e a bola começava uma viagem entre ressaltos que, ao acaso, levaram-na para perto de Cristiano Ronaldo. E foi ele, o de sempre, um dos “dois ou três gajos” que estiverem sempre na área, a fazer o 1-0.

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Era um alívio. O golo aparecia do nada. Mesmo. E um recorde também — este foi a 23.ª bola que Ronaldo atirara para o fundo da baliza, entre qualificações e fases finais de Europeus. Passava a ter o melhor registo de sempre, ultrapassando os 22 golos do reformado dinamarquês John-Dahl Tomasson. O jogo resolveu-se aqui. Ainda houve tempo para dois remates inofensivos da Arménia, para Éder falhar um pontapé na bola, à frente da baliza, e para o mesmo, aos 89’, cabecear ao poste num canto batido por Ricardo Quaresma.

Nada mudaria até ao fim. O 1-0 estimou-se e manteve-se, tal como acontecera em 2007, no último duelo que a seleção nacional travara com a Arménia. Também aí, numa versão mais jovem, Cristiano Ronaldo dera o golo da vitória. Decisivo, como sempre. Desta vez deu a segunda vitória consecutiva a Fernando Santos na corrida para o Europeu de 2016 e deixa Portugal no segundo lugar do grupo, a um ponto da Dinamarca, mas com menos um encontro realizado. E, tal como em Copenhaga, só o fez quando Quaresma já andava a pisar o relvado.

Os “gajos” de sempre. Os únicos que, aliás, já marcaram golos nesta nova era com Fernando Santos — Ronaldo de cabeça, contra a Dinamarca, e de pé direito, frente à Arménia, e Quaresma diante da França, com o pé destro, de penálti. Foram estes, uma vez mais, a desbloquear um jogo que há muito estava complicado. A bem ou a mal, com mais ou menos cruzamentos e jogadores na área, a seleção nacional está viva na corrida rumo à meta do Europeu de 2016.