A par das investigações da Justiça, os reguladores abriram já vários processos contra os antigos gestores do Banco Espírito Santo (BES). A grande maioria das suspeitas e indícios sob investigação configura contra ordenações muito graves, em caso de condenação, e que pode dar origem a coimas até cinco milhões de euros para as instituições e dois milhões de euros para pessoas singulares. As sanções acessórias podem implicar inibição do exercício de funções de chefia e direção no setor financeiro — que podem chegar a dez anos no caso da banca.

Há também investigações em curso que não visam a anterior gestão. Mas vamos às suspeitas, ponto a ponto.

As suspeitas do Banco de Portugal

O Banco de Portugal está a investigar para já quatro processos que podem determinar a existência de contra ordenações muito graves.

Segundo revelou o governador Carlos Costa na comissão de inquérito, os processos sancionatórios já abertos visam investigar as seguintes suspeitas:

  • as condições de avaliação do risco na colocação de papel comercial da Espírito Santo Internacional (ESI) em clientes de retalho do BES, bem como a ocultação de prejuízos da holding não financeira do Grupo Espírito Santo;
  • As relações entre o BES e o BESA Angola, sob diversos ângulos, incluindo a inadequação de procedimentos em matéria de prevenção de riscos de branqueamento de capitais;
  • Eventuais atos dolosos de gestão ruinosa relativamente à emissão e colocação de dívida do BES em sociedades veículo com sede em países estrangeiros, através de movimentos que passaram por um intermediário suíço, a par da substituição maciça de dívida GES por dívida BES;
  • O incumprimento por parte dos administradores das instruções dadas pelo regulador, contornando o ring-fencing (barreira de proteção) imposto pelo Banco de Portugal entre o BES e o GES.

De acordo com o Jornal Público, os processos envolvem Ricardo Salgado, mas também Amílcar Morais Pires (CFO) e José Manuel Espírito Santo, que fazia parte do conselho superior do Grupo Espírito Santo.

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Angola

O BES emprestou 3,3 mil milhões de euros à filial angolana que concedeu 5,7 mil milhões de dólares (4,5 mil milhões de euros) de créditos sem garantias e cujos beneficiários não são todos conhecidos. O Estado angolano concedeu no ano passado uma garantia para cobrir o risco de incumprimento destes créditos, mas o Banco de Portugal nunca chegou a considerar válida para efeitos que o BES pretendia. O banco já sob gestão de Vítor Bento teve de provisionar nas contas semestrais perdas com a filial angolana, que entretanto foi intervencionada pelo Estado.

Papel comercial e ocultação de dívida da ESI

O regulador quer saber se foram cumpridas as regras de gestão e avaliação do risco na venda de papel comercial das empresas não financeiras do Grupo Espírito Santo (GES) aos clientes de retalho dos balcões do banco, em particular no que respeita aos títulos detidos por uma sociedade, a ESI, que estava tecnicamente falida. Este processo envolve a ocultação de dívida da Espírito Santo Internacional, o que configura uma falsificação de contas que permitiu continuar a obter financiamento para esta holding não financeira do GES.

Foi na Espírito Santo Internacional (ESI) que surgiram as primeiras suspeitas em relação à saúde financeira do maior acionista do BES. A ESI era um dos 12 grandes devedores da banca nacional que esteve sob exame do Banco de Portugal para avaliar se tinha capacidade financeira e económica para reembolsar as dívidas, em particular as contraídas junto do BES.

O regulador considera que o BES não foi diligente na avaliação de riscos intrínsecos à colocação de dívida emitidos pela ESI, quer para os clientes quer para o banco, em particular no que toca à fiabilidade das contas. A utilização do papel comercial para financiar a empresa com base em contas falsas acabou por comprometer ainda mais a situação banco enquanto contraparte da ESI. O BES ficou também mais exposto a este risco quando o Banco de Portugal obrigou o seu maior acionista, a Espírito Santo Financial Group (ESFG), a constituir uma provisão de 700 milhões de euros para cobrir o risco de incumprimento.

A Eurofin e a dívida do BES para financiar o GES 

Este processo investiga o papel da Eurofin na colocação de obrigações emitidas pelo Banco Espírito Santo (BES). O Banco de Portugal suspeita que a sociedade financeira suíça, que tem várias ligações a negócios e quadros do GES, atuou nestas transações como intermediário das empresas do Grupo Espírito Santo.

A Eurofin comprou obrigações do BES emitidas a taxa zero com maturidade de longo prazo (40 anos) com uma rendibilidade elevada, e a um preço baixo. Esses títulos foram usados numa operação de substituição da dívida de empresas do grupo Espírito Santo que estava colocada em sociedades veículo, cujas ações preferenciais tinham sido vendidas a clientes institucionais e não residentes. Mas quando chegaram a estes clientes as obrigações tinham uma rendibilidade mais baixa, gerando mais-valias para a Eurofin. Em julho, o banco recomprou essas obrigações, a um preço ainda mais alto, antecipando a amortização deste títulos que deveriam ter sido pagos ao longo de 40 anos.

Estas operações, que envolveram triangulação por sociedades offshore, permitiram a transferência de fundo avultados do banco para refinanciar dívida das empresas do GES. Do lado do BES, ficaram menos-valias potenciais que foram transformadas em prejuízos nas operações de recompra: 800 milhões de euros.

Incumprimento das ordens do Banco de Portugal

O supervisor já concluiu que houve incumprimento de instruções dadas à administração do BES nas semanas que antecederam a chegada de Vítor Bento ao cargo do presidente, o que constitui uma contra ordenação muito grave. Enquanto o Banco de Portugal dava ordens para travar e até reduzir a exposição do banco ao grupo, no final do primeiro semestre e sobretudo em julho, aconteceu precisamente o contrário.

O desrespeito pelas ordens de ring-fencing (barreiras de proteção) vem já desde o início do ano, mas assumiu proporções muito mais graves no período de vazio de poder, entre a demissão de Salgado e a chegada de Bento. Há também cartas de conforto assinadas por dois administradores em favor de investidores internacionais terceiros (Petróleos da Venezuela) a comprometer o BES no reembolso das aplicações feitas por estas entidades na dúvida do GES.

Infrações especialmente graves

A lista de factos sob investigação que podem configurar uma contraordenação muito graves é longa:

  • A falsificação de contabilidade ou a inobservância de outras regras contabilísticas aplicáveis quando essa inobservância prejudique gravemente o conhecimento da situação patrimonial e financeira da entidade;
  • Infrações às normas de conflitos de interesses, designadamente no que toca à concessão de empréstimos a empresas controladas por membros do conselho de administração e à participação de administradores na aprovação de financiamentos de que são beneficiários;
  • Atos dolosos de gestão ruinosa, em detrimento de depositantes, investidores e demais credores, praticados pelos membros dos órgãos sociais;
  • Prática pelos detentores de participações qualificadas de atos que impeçam ou dificultem de forma grave uma gestão sã e prudente;
  • Desobediência ilegítima a determinações do Banco de Portugal ditadas especificamente para o caso individual considerado;
  • A prestação ao Banco de Portugal de informações falsas ou incompletas suscetíveis de induzir a conclusões erróneas;
  • Incumprimento das medidas determinadas pelo BdP para efeitos de remoção dos constrangimentos à potencial aplicação de medidas de intervenção corretiva ou o incumprimento puro e simples das medidas de correção previstas.

Só este ano é que foi criminalizada a recusa de acatar ordens do Banco de Portugal ou a criação de obstáculos à sua execução, que pode o implicar a aplicação de pena prevista para o crime de desobediência qualificada.

Sanções

As infrações muito graves podem ser punidas com coimas até cinco milhões de euros. No caso de pessoa coletiva, o limite máximo da coima “abstratamente aplicável” é elevado ao correspondente a 10% do total do volume de negócios anual líquido do ano anterior à data de decisão condenatória. Para pessoas singulares, está prevista sanção acessória de inibição de cargos sociais e funções de administração até dez anos.

O que investiga o regulador da Bolsa

A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) tem em curso quatro processos de contra ordenação contra o Banco Espírito Santo, dos quais pelo menos um foi aberto em 2014. Segundo a documentação enviada à comissão de inquérito, há mais três averiguações relacionadas com o banco, que poderão resultar em processos. A CMVM investiga ainda suspeitas de crime de mercado na transação de ações do banco.

Produtos de investimento

O processo de contra ordenação aberto prende-se com os deveres de informação dos intermediários financeiros na comercialização de instrumentos e com a atividade de gestão de carteiras e conflito de interesses. Em causa poderá estar a atuação do banco enquanto intermediário financeiro na venda de produtos de investimento das empresas do Grupo Espírito Santo, que à data era o maior acionista do BES.

Sabe-se hoje que a informação financeira sobre as empresas que acompanhou a venda destes produtos estava errada e escondia buracos, como o caso da ESI. O presidente da CMVM, Carlos defendeu no Parlamento que o banco criou a expectativa legítima de reembolso total destes investimentos aos clientes de retalho. A rentabilidade garantida era assegurada através da recompra dos instrumentos financeiros pelo próprio banco. Foi para cobrir o risco de incumprimento das empresas do GES perante os clientes do BES, que a acionista comum, a ESFG teve de constituir a provisão de 700 milhões de euros.

Carlos Tavares admitiu também que é preciso averiguar se o compromisso não escrito de recompra de obrigações e outros títulos por parte do banco cumpriu as regras.

Deveres dos intermediários financeiros no âmbito da auditoria forense

Este é um processo que está a ser conduzido em conjunto com o Banco de Portugal e com o apoio da auditora Deloitte. Em causa estão as suspeitas já identificadas por Carlos Costa e que, para além de processos de contra ordenação, poderão dar origem a processos-crime. A auditoria será enviada ao Ministério Público e estará sujeita ao segredo de justiça. Quaisquer indícios de natureza criminal que sejam entretanto detetados nesta auditoria serão entregues à PGR. O Banco de Portugal apresentou já uma queixa-crime em meados de setembro.

Aumento de capital

O presidente da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) insistiu no Parlamento que a supervisora da bolsa não tinha poder para impedir o reforço de capital de 1.045 milhões de euros, realizado em maio. “Nenhuma entidade pública pode impedir um aumento de capital aprovado pelos acionistas”. O que a CMVM pode e está a fazer é a investigar se as entidades responsáveis pelo prospeto da operação forneceram toda a informação que tinham sobre a situação financeira do grupo e do banco.

Foi com base no prospeto que os investidores asseguraram a colocação de operação que já foi classificada pelo Financial Times como o pior negócio financeiro de sempre. Carlos Tavares já sublinhou que as irregularidades financeiras “materiais” da ESI estavam identificadas no prospeto, embora fosse assinalado que não teriam impacto no BES.

Para além do emitente (o BES) e os seus administradores, esta investigação visa o intermediário financeiro, o BESI, mas também poderá apanhar os bancos que tomaram firme a operação.

Alguns destes investidores internacionais estiveram envolvidos na venda massiva de ações que também está a ser vigiada.

Atuação relacionada com a aprovação de contas

A CMVM refere ainda uma averiguação relacionada com a aprovação de contas. O ofício de resposta à comissão parlamentar de inquérito ao BES não explicita sobre o que trata esta averiguação, mas sabe-se que o regulador do mercado está a investigar as contas da Portugal Telecom por causa do investimento de 900 milhões de euros na Rioforte, uma empresa controlada por um dos seus maiores acionistas. Os investimentos de tesouraria da PT no GES não estavam explicitados nas contas da operadora até ao terceiro trimestre de 2013, ao contrário do que está previsto para operações entre partes relacionadas. E hoje sabe-se que a PT terá investido em continuidade centenas de milhões de euros em produtos e dívida das empresas do GES.

Abuso de informação privilegiada

A par do apuramento de eventuais irregularidades de natureza contraordenacional, há indícios sob investigação que também constituem matéria de natureza criminal. Em causa estão suspeitas do crime de mercado abuso de informação privilegiada que estão a ser averiguadas ao nível da negociação de ações do BES e de outros instrumentos financeiros (obrigações) associados ao banco.

As averiguações centram-se em particular nos últimos dias de transação após o anúncio dos prejuízos semestrais e a subsequente queda de 80% da cotação do banco em dois dias até ser suspensa. Na comissão de inquérito, Carlos Tavares revelou ter recebido um telefonema do governador do Banco de Portugal pouco depois das três da tarde de sexta-feira, 1 de agosto, em que comunicou quer seria feito um anúncio no fim de semana. Carlos Costa receou fugas de informação e as ações foram suspensas. O presidente da CMVM esclareceu ainda que estas averiguações estendem-se à transação do título durante todo o ano.

O que investiga o ISP

O presidente do Instituto de Seguros de Portugal (ISP), José Almaça, revelou na comissão de inquérito que está a ser avaliada a responsabilidade dos administradores da Tranquilidade nos investimentos realizados no segundo trimestre do ano nas suas acionistas, em particular na Espírito Santo Financial Group.

A Tranquilidade aplicou 150 milhões de euros em dívida de curto prazo de empresas que já não tinham capacidade de reembolso. Esta situação colocou a seguradora em incumprimento das provisões técnicas e levou o ISP a intervir, submetendo as decisões da gestão ao visto prévio e ameaçando retirar a licença caso a venda não fosse concretizada. José Almaça explicou que a prioridade foi salvaguardar a companhia. Mas “em devido tempo vamos tratar desse assunto (responsabilidade dos administradores). Estamos a recolher informações”, disse o presidente do ISP, revelando ter forçado a demissão de um administrador que tentou comprar produtos do GES à revelia das ordens do regulador.

Contraordenações muito graves
A ocultação de situação de insuficiência financeira, atos de intencional gestão ruinosa praticados por membros de órgãos sociais de seguradoras com prejuízo para clientes e demais credores, assim como a prática pelos acionistas de atos que impeçam ou dificultem de forma grave a gestão sã e prudente, são considerados contra ordenações muito graves na lei que regula setor segurador.

Sanções
Coima máxima de 750 mil euros para pessoas coletivas e de 150 mil euros para singulares.
Inibição do exercício de cargos em seguradoras pode ir até três anos