O Teatro das Compras, que há seis anos leva encenações às lojas tradicionais no âmbito das Festas de Lisboa, regressou excecionalmente este sábado à drogaria S. Pereira Leão, na Baixa lisboeta. O objetivo é o de impedir que as portas da drogaria centenária se fechem a 31 de janeiro para ali nascer um hotel.
Perfumes avulso, sabonetes, ambientadores, cremes, detergentes, toucas, maquilhagem. Muitas promoções para escoar um stock que, no dia 31 de janeiro de 2015, pode não ter local para ser vendido. Em tarde chuvosa, entre as 16h00 e as 17h00 só uma turista espanhola entrou no número 223 da Rua da Prata, à procura de uma pasta de dentes. Ali bem perto, no número 181, o amplo espaço da loja Tiger era pequeno para a multidão que procurava a prenda de Natal ideal.
“Contra a crise, a drogaria S. Pereira Leão arranja sempre solução!“, disse uma das atrizes do Teatro das Compras, a meio da performance onde se imitava o passado da drogaria centenária. Durante 20 minutos, os poucos presentes puderam reviver através do teatro as memórias das verdadeiras funcionárias da S. Pereira Leão que ali trabalham há quase 50 anos. Tempos em que as “madames” se sentavam na drogaria e mandavam buscar o pó de arroz, o creme e o batom. Vestidas à moda antiga, as atrizes recordavam a Baixa dos armazéns Grandella, dos muitos fatos nas montras. “Agora mudou tudo, é só hotéis”, comentavam.
Fora da encenação, as três funcionárias e os três sócios aguardam por uma solução que teima em não chegar. Há seis meses, os sócios receberam uma carta que dava conta do novo projeto do proprietário do edifício: ceder o prédio a um novo hotel. Ali já só funciona a drogaria, uma vez que o prédio necessita de obras urgentes. Mas só deverão chegar depois desta fechar as portas, para que o hotel se possa ali instalar. Depois das obras, é certo que a renda irá subir.
“Os herdeiros têm deixado isto estar aberto, ao nosso cuidado, embora não esteja a dar muito lucro porque o negócio está todo mau. Mas as minhas colegas ainda precisam de mais alguns anos para a reforma e eles têm deixado isto aberto”, contou ao Observador Fernanda Silva, funcionária gerente da drogaria, cujos proprietários são os filhos dos primeiros donos, já falecidos. Das três funcionárias, só Fernanda Silva vai para a reforma. Olhando para a conjuntura, as outras duas trabalhadoras sabem o que as espera. Não têm ainda idade para a reforma, mas dizem que ninguém lhes vai dar trabalho.
A primeira dificuldade chegou há um ano, com “uma atualização de renda de 300 para 800 euros”, feito pelo senhorio juntamente com um contrato de cinco anos. “Só que cerca de meio ano depois disse-nos que tínhamos de sair a 31 de janeiro de 2015 porque ia fazer aqui um hotel”, disse. De acordo com Fernanda Silva, a sócia gerente anda a tentar negociar, através de advogados. “Para nos dar mais tempo, pelo menos para vender as coisas”, disse. Quando lhes foi dado o prazo, os sócios quiseram ver se a decisão era reversível. Agora o prazo está a aproximar-se e, mesmo com promoções, as pessoas “com a crise que está só levam o que precisam”.
Não sabemos se dá para ir para outro sítio, porque isto dava para manter. Mas para arranjar um espaço novo pedem-nos para cima de 2.000 euros [por mês]. Assim é difícil manter um negócio destes”, contou.
O espaço centenário já foi a Antiga Casa Alvarez. Em 1964, nascia ali a S. Pereira Leão pela mão de três sócios. O negócio, onde se faziam perfumes, aromas e essências, comemorou este ano meio século. É também há 50 anos que Fernanda Silva trabalha ali, juntamente com mais duas funcionárias que reúnem toda a sabedoria sobre os produtos que vendem.
Contactado pelo Observador, o proprietário disse não querer falar, uma vez que o assunto está a ser conduzido pelos advogados. Questionado sobre a possibilidade de a drogaria poder continuar no mesmo local, o proprietário do edifício disse apenas nunca ter chegado “a pensar nisso”, acrescentando que os sócios não tentaram continuar ali.
Petição para “uma cidade das pessoas”
No Portugal da crise, da nova lei das rendas e do ‘boom’ turístico, a história tem-se repetido. A charcutaria Nova Açoreana, com 120 anos de história, fechou em 2011. No número 116 da Rua da Prata nasceu no seu lugar um hotel. Os Armazéns Ramos também fecharam no ano passado. No seu lugar, mais um hotel. A Ourivesaria Aliança, na Rua Garrett, é agora uma loja da marca catalã Tous. “Estão a desmantelar e a descaracterizar a Baixa”, acusa Fernanda Silva.
Foi Miguel Honrado, enquanto presidente da EGEAC, que criou o Teatro das Compras. “Para chamar a atenção para estas lojas tradicionais”, disse, este sábado. Miguel Honrado esteve presente a título pessoal, para “defender o comércio tradicional, que é uma das características distintivas da Baixa lisboeta”, disse ao Observador. “Os hotéis são bem-vindos, mas tem de haver aqui um equilíbrio entre a memória da Baixa e o seu património, e as coisas novas que vão aparecendo“. O presidente da empresa municipal que gere a animação cultural lisboeta entende que “os tempos mudaram” e que a rentabilização “é importante”, mas defende que os projetos de investimento têm de se relacionar com os negócios locais mais característicos, que “devem ter direito à sua existência”.
Desde o primeiro ano que o Teatro das Compras trabalha com a drogaria S. Pereira Leão. O projeto, liderado pelo italiano Giacomo Scalisi, só faz sentido se restarem lojas tradicionais onde atuar. Na sua visão “de estrangeiro”, Lisboa é “uma cidade que não cuida de si própria”, disse.
“Fashion, gourmet, vintage. Tudo palavras estrangeiras, por acaso. Depois os turistas vêm visitar o quê? Não se podem fechar estas lojas para fazer lojas vintage. Isto é o verdadeiro vintage!”, disse Scalisi.
O Teatro das Compras lançou uma petição online “contra o encerramento da S.Drogaria Pereira & Leão, ou a sua transformação num pastiche vintage“. A defesa da Drogaria é um símbolo de um objetivo maior: evitar que Lisboa se torne uma cidade “desumanizada, onde a história e a vida das pessoas vale tão pouco face ao lucro do turismo massificado e da especulação imobiliária”. Admitem que a petição pode não conseguir mais do que divulgação, mas acreditam que o poder público – especialmente a Câmara Municipal de Lisboa – terá de tomar uma atitude se os protestos se fizerem ouvir.
“Recusamos uma Baixa de turistas e gente rica – com 96 hotéis mas sem história, sem o pequeno comércio local de qualidade, especifico, que sempre a caracterizou”, pode ler-se na petição.