“O mundo desumanizou-se”. É assim que o cartoonista Luís Afonso descreve o recente ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, França, que vitimou 12 pessoas, entre as quais, o diretor daquele semanário, Charb, e outros três desenhadores: TignousWolinsky e Cabu – um dos mais respeitados cartoonistas franceses da atualidade.

“Por muito que a nossa imaginação tenha sido desafiada para o mal, nunca estamos preparados para isto. Vivemos uma segunda Idade Média, onde a intolerância está espalhada por todo o lado”, afirmou o cartoonista, conhecido pelos trabalhos no Jornal de Negócios, no Público e n’A Bola.

Luís Afonso confessou-se “chocado e incrédulo” com a violência do ataque dirigido aos jornalistas do Charlie Hebdo. Um ataque que foi, mais do que tudo, um “atentado à liberdade de expressão”. Ainda assim, sublinhou, “agora é importante não partir para um contra-ataque nas mesmas bases de intolerância” e “generalizar” um ato isolado a toda a comunidade islâmica. O cartoonista fez questão, inclusivamente, de lembrar a posição assumida pelo conselho francês do culto muçulmano (CFCM), instância representativa dos muçulmanos de França, que condenou o “ato bárbaro”.

Questionado se alguma vez tinha sentido a sua liberdade de expressão restringida de alguma maneira ou se tinha sido alvo de alguma represália depois de uma sátira mais polémica, Luís Afonso começou por sublinhar que “nada do que tenha vivido é comparável a um ataque desta escala”. Ainda assim, o artista reconheceu: “Vivemos num mundo bipolarizado entre bons e maus, aliados e inimigos, um terreno que é fértil na promoção da intolerância”.

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Apesar de colaborar desde 1993 com o jornal Público, curiosamente é o “Barba e Cabelo”, rubrica que assina n’A Bola, que recolhe críticas mais duras. Luís Afonso explicou porquê: “Existe uma cultura de intolerância e de fundamentalismo enraizada no futebol português. Todos os adeptos pensam que existe uma cabala ou uma campanha de conspiração contra os clubes que defendem” o que faz com que reajam, na maioria das vezes, “de forma acéfala” à sátira.

No “Bartoon”, as tiras que ocupa no Público, houve dois cartoons que se tornaram muito polémicos, ambos assinadas em 2001, ano dos atentados às Torres Gémeas, em Nova Iorque.

2001.09.23-A CRIAÇÃO DE BIN LADEN

A Criação de Bin Laden – Bartoon, Luís Afonso

 

2001.10.02-DEUS-WHISKY DUPLO copy

Deus revisita a criação – Luís Afonso

No entanto, garante que, mesmo reconhecendo que o “mundo é um lugar pouco recomendável” e “com cada vez menos espaço para a esperança”, nunca vai hesitar na hora de desenhar aquilo em que acredita. Receios? “Poucos”. “Só receio não fazer alguma coisa e depois arrepender-me de não ter a feito”.

Opinião partilhada por António Moreira Antunes, atual presidente do World Press Cartoon e autor do “Cartoon do António”, publicado no semanário Expresso. “Foi um ataque hediondo e criminoso. Um ataque à liberdade de expressão e de imprensa. Mas, enquanto sociedade, não temos outra alternativa a não ser lutar por estes valores e defendê-los a todo o custo”, afirmou ao Observador.

Apesar de lembrar, tal como Luís Afonso, que é importante não cometer o erro de culpabilizar todos os cidadãos muçulmanos pelo ataque, o cartoonista sublinhou: A “comunidade islâmica tem que se demarcar deste tipo de massacres”, ou então, “corremos o risco de aumentar a islamofobia e a xenofobia que já existem”.

O trabalho do artista esteve no centro de uma polémica na sociedade portuguesa depois de, em 1993, ter publicado naquele jornal um cartoon que ilustrava o Papa João Paulo II com um preservativo no nariz.

Na altura, o cartoon satirizava as declarações de João Paulo II proferidas durante a visita que fez a Kampala, capital do Uganda, em que condenou o uso do preservativo e defendeu a castidade como a única solução para acabar com a propagação do vírus da Sida.

Preservativo Papal

Preservativo Papal – António, Cartoon do António (Expresso)

A imagem causou controvérsia e valeu-lhe duras reações de alguns setores mais conservadores da sociedade – chegou a circular um abaixo-assinado contra aquele cartoon que deu direito, inclusivamente, a discussão no Parlamento.

Ainda assim, o cartoonista acredita que esse lado negativo e a pressão para não abordar determinados assuntos são consequências naturais da profissão. O que não significa que ceda um centímetro naquilo que defende e acredita.

“A profissão de cartoonista é uma profissão de riscos, nós desenhamos riscos e corremos riscos”, resumiu António. “Se há medo? Medo há sempre, mas não há outra opção que não seja defender a liberdade de expressão”, concluiu.