A 2 de julho de 2009, Fernando Ribeiro entregou o seu antigo automóvel, um Citroën Saxo, num stand na zona de Cascais como retoma para a aquisição de um novo veículo. Um dia depois, ao verificar que o carro ainda estava em seu nome, entregou um pedido de apreensão através do portal online da Conservatória do Registo Automóvel – um mecanismo que permite pedir a retirada de circulação dos veículos que não tenham o registo de propriedade regularizado.

Cinco anos depois, a situação não só não está regularizada – para efeitos legais, Fernando Ribeiro continua como titular do veículo – como o carro já foi vendido a terceiros. Mais: Fernando Ribeiro teve que pagar ao longo deste período 500 euros de Imposto Único de Circulação (IUC) e ainda recebeu uma multa de 250 euros de um acidente de viação em que não esteve envolvido.

Fernando Ribeiro tentou de tudo para regularizar a situação: entrou em contacto com a PSP de Trajouce, a GNR, o Ministério da Justiça, o Provedor de Justiça e o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), mas os esforços foram em vão. A posição da GNR, documentada através de um email que Fernando Ribeiro fez chegar ao Observador, é clara nesse sentido: “Na generalidade dos casos, só em caso de o condutor não ter os documentos da viatura, seria então solicitada, por meio rádio, um pedido de informação, para saber se a viatura era furtada ou constava para apreender”, pelo que a apreensão da viatura estava restringida a estes cenários.

“É uma situação vergonhosa e completamente inaceitável. [A falta de atuação das autoridades competentes] assume clara e inequivocamente que é normal alguém sobre um bem ter dois estados, isto é, é o proprietário para pagar impostos, mas não é o proprietário para efeito de direitos (já que não consegue fazer desaparecer o seu nome do registo de propriedade)”, afirma ao Observador.

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Em resposta aos sucessivos contactos de Fernando Ribeiro, o Provedor de Justiça admitiu que “tem recebido inúmeras queixas sobre as dificuldades sentidas no cancelamento de matrículas e sobre a ineficácia dos pedidos de apreensão de veículos para efeitos de regularização de propriedade”. E sublinhou, ainda, que este “problema tem implicações a nível fiscal (porque quem figura como proprietário no registo deve pagar o Imposto Único de Circulação) e contraordenacional (porque as notificações postais são remetidas para quem figura no registo como proprietário do veículo)”.

Foi precisamente isso que aconteceu em 2012. Fernando Ribeiro foi notificado para pagar cerca de 500 euros relativos ao Imposto Único de Circulação (IUC) em falta desde 2009, mais juros. Saldou a dívida na esperança de que tal acelerasse o processo de regularização do veículo.

Mas, no verão de 2013, o queixoso recebeu nova notificação, desta vez da GNR, para pagar uma coima de 250 euros, depois de o seu anterior veículo ter estado envolvido num acidente de viação quando circulava sem a inspeção periódica obrigatória.

Fernando Ribeiro, então, apresentou uma queixa junto da GNR, onde explicava a situação. A resposta foi a seguinte: “Quando a viatura acima identificada foi interveniente num acidente de viação, o condutor apresentou os documentos da viatura, nada indiciava que constasse para apreender, apenas foi verificada a infração de falta de Inspeção Periódica Obrigatória (IPO) e como tal foi elaborado o respetivo auto que a GNR lhe endereçou”.

Além disso, explicou a GNR, “a patrulha que foi chamada ao acidente de viação, não era portadora de equipamento tecnológico, que permitisse ter acesso à base de dados do IMT, no entanto, na generalidade dos casos, só em caso do condutor não ter os documentos da viatura, seria então solicitada, por meio rádio um pedido de informação para saber se a viatura era furtada ou constava para apreender”.

Foi-lhe dada também a indicação para remeter a queixa para a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), que lhe deu instruções para ignorar a multa de 250 euros. Apesar dos sucessivos contactos, e mesmo depois de o novo utilizador do automóvel ter sido identificado pelas autoridades como interveniente num acidente de viação, Fernando Ribeiro continuou sem conseguir regularizar a situação. Mais: continuou, também, a receber as faturas do IUC em casa. Mas, desta vez, recusa-se a pagar. “As autoridades estão a ser coniventes com uma ilegalidade”, acusa.

De acordo com o Provedor de Justiça, que analisou a documentação disponibilizada por Fernando Ribeiro, “o pedido de cancelamento da matrícula foi formalizado junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), a 2 de maio de 2014”. A partir desta data, a Provedoria de Justiça assegurou que, depois de um período “não inferior a 120 dias”, o caso, a manter-se, poderia ser reavaliado e iria ser “ponderado o restabelecimento de diligências instrutórias complementares”.

No portal do IMT, pode ler-se que, mediante o pagamento de uma taxa de 10 euros, os interessados podem solicitar a apreensão do veículo, cabendo depois às autoridades competentes executar a apreensão da viatura. Se ao fim de seis meses “o veículo, cuja propriedade tenha sido transferida a terceiro há mais de um ano e este não tenha atualizado o registo de propriedade, o titular daquele registo pode requerer o cancelamento da matrícula”, esclarece a entidade.

Porém, mais de oito meses depois do pedido de cancelamento de matrícula, o antigo automóvel de Fernando Ribeiro continua em seu nome e a circular normalmente. O antigo dono continua a ser obrigado a pagar os impostos sobre o veículo – algo que se recusa a fazer – e ser-lhe-ão imputadas eventuais contraordenações ou crimes cometidos ao volante daquele automóvel.

Qual é o próximo passo? Recorrer à Procuradoria-Geral da República (PGR) e ao Secretariado-Geral da Comissão Europeia. “Já fiz uma queixa-crime [junto destas entidades] e já informei todas as PGR na Europa do risco que os seus cidadãos correm por existir este esquema de corrupção e extorsão organizada em Portugal“, declarou Fernando Ribeiro.

Nova lei permite, a quem vende um carro, requerer a alteração de registo

Já em 2012, o Provedor de Justiça alertava para a situação de “milhares de cidadãos” que foram notificados para pagar Imposto Único de Circulação (IUC) sobre automóveis que “já tinham desaparecido ou sido vendidos”. Esta realidade foi introduzida pela lei aprovada em 2007, que passou a obrigar os proprietários constantes do registo de propriedade a pagarem o imposto, independentemente da circulação dos veículos na via pública.

Mais: até 14 de dezembro de 2014, cabia ao novo proprietário do automóvel a tarefa de regularizar o registo de propriedade, no prazo de 60 dias a contar da data da venda. Esta particularidade conduzia a situações semelhantes à de Fernando Ribeiro, em que o novo titular do veículo, por desconhecimento da lei ou má-fé, não procedia à regularização da situação, o que na prática exigia que fosse o antigo dono a assumir a responsabilidades relativas à propriedade – o pagamento do IUC, por exemplo.

A partir dessa data, porém, entrou em vigor uma lei que permite a quem vende o automóvel requerer a alteração do registo de propriedade. A requisição pode ser feita “nas Conservatórias do Registo Automóvel, no Instituto dos Registos e Notariado, no IMT da área de residência, por via postal ou no site www.automovelonline.mj.pt”, pode ler-se na página da Deco.

Para tal, explica a organização de defesa dos consumidores, basta a apresentação de um “comprovativo de que a venda foi consumada” – “faturas, recibos ou outros documentos, onde conste a matrícula do veículo, o nome e a morada do vendedor e do comprador”, ou ainda, “uma declaração do vendedor, desde que indique o maior número possível de elementos sobre o processo”. Este último recurso não pode ser utilizado caso o negócio tenha sido celebrado com um stand de automóveis.

Depois de o pedido de alteração do registo de propriedade, o novo comprador tem 15 dias para, “por escrito, opor-se ao pedido, contestar as informações ou completar os elementos necessários”. A seguir, “cabe ao conservador decidir se o registo é efetuado em nome do comprador. Em caso negativo, e se não houver recurso, o conservador pode mandar apreender o veículo”.

Mas quanto custa interpor o pedido?

Depende. Se recorrer aos postos de atendimento do registo automóvel o vendedor da viatura tem de desembolsar 75€ para pedir a alteração do registo. No entanto, o custo desce para 40€ se a venda aconteceu antes de 31 de dezembro de 2013 e se o registo for pedido até 31 de dezembro de 2015. Existe, ainda, um desconto de 15% para quem interponha a requisição através da Internet.

A diferença entre os valores é vista com “estranheza” pela Deco, que sublinha ainda o seu caráter “despropositado”, tendo em conta que a obrigatoriedade de registar a propriedade “não é uma responsabilidade do vendedor”. Mesmo com a alteração da lei, continua a ser o antigo proprietário, o vendedor, a arcar com grande parte das despesas.

Apesar da introdução da nova lei, que vai permitir agilizar o processo, o pesadelo de Fernando Ribeiro e de outros tantos portugueses pode não conhecer um desfecho tão célere quanto o desejado. É que o diploma aprovado prevê que tanto o pedido de alteração do registo automóvel como a apreensão dos veículos – quando necessária – sejam avaliadas no prazo máximo de dois anos.