Provavelmente nunca ouviu falar de Hilda Hilst, mas isso não é de estranhar. Poeta, dramaturga e romancista, foi autora de uma vasta obra, que é mais estudada nas universidades do que acessível nas livrarias. Em Portugal, são poucos aqueles que conhecem ou já leram Hilda Hilst. Mas, por incrível que pareça, a escritora é unanimemente reconhecida como uma das mais importantes autoras brasileiras. Distinguida com alguns dos mais significativos prémios literários no Brasil, a sua obra foi traduzida em várias línguas, como o inglês ou o alemão, e é hoje considerada uma das vozes mais relevantes da língua portuguesa do século XX.

Hilst publicou o seu primeiro livro, Presságio, em 1950 e rapidamente se tornou numa figura relevante no meio literário brasileiro. Apesar da atenção que recebeu da crítica, Hilst sempre se sentiu ignorada pelo público. Nos últimos anos de vida, chegou mesmo a afirmar com a maior naturalidade que “talvez daqui a cem anos alguém me leia, mas eu não tenho esperança”. Foi com a certeza de que nunca ninguém a tinha lido e que todos os seus livros eram “inéditos” que, em 1990, fez um anúncio inesperado. “Quero ser famosa, cansei dessa história de prestígio”, disse então à imprensa. Tinha decidido começar a escrever romances pornográficos.

É este lado menos conhecido da autora brasileira que a editora Orfeu Negro pretende disponibilizar ao público. Com ilustrações de André da Loba, considerado um dos melhores ilustradores do mundo pelo Lüzer’s Archive, Obscénica – Textos Eróticos e Grotescos, reúne textos de Hilst publicados entre 1990 e 1992. Textos “ditos obscenos, sarcásticos e grotescos”, como a própria editora refere.

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O livro, dividido em duas partes, contém largos excertos de Contos de Escárnio/Textos Grotestos e reproduz integralmente o livro de poemas Bufólicas. Os contos, publicados pela primeira vez em 1990, constituem a primeira parte de uma trilogia erótica começada pela autora para “alegrar-se um pouco”. Na altura, chocaram e perturbaram grande parte dos leitores. Não que o erotismo fosse algo completamente estranho a Hilst. Ele sempre esteve lá. “O erótico, para mim, é quase uma santidade”, costumava afirmar.

Contos de Escárnio narra as aventuras e desventuras amorosas de Crasso, assim chamado porque a mãe “tinha mania de ler História das Civilizações”. Órfão, foi criado pelo tio Vlad, “brasileiro e fazendeiro”, mas cuja origem do nome ninguém conhece. Se a infância de Crasso foi agitada, a vida adulta e sexual não lhe fica atrás. A segunda parte do livro, Bufólicas, publicado originalmente em 1992, constitui a saga mais obscena da autora. Escrita em verso, é um verdadeiro desafio a “todos os tabus e preconceitos da sociedade em que vivia”, como refere Jorge Lima Alves no prefácio da obra.

Mas a verdade é que, como refere a editora, a pornografia não passa de um pretexto para a autora falar de alguns dos seus temas favoritos – o amor, a solidão, o tempo e a morte. Há sempre algo de comum nos textos de Hilst, quer sejam eles pornografia ou não – a criação de um mundo grotesco e aterrador, mas ao mesmo tempo belo e colorido, que serve de pano de fundo a uma reflexão filosófica sobre o lugar do homem no mundo. Porque afinal, como ela disse um dia ao escritor Caio Fernando Abreu, “Deus pode ser uma negra noite escura, mas também um flambante sorvete de cerejas”.