Depois de se bater à porta, as passadas de Rena Dourou ouvem-se por largos segundos. Quando abre, percebe-se porquê: da secretária da autarca à entrada vão uns 25 metros, embelezados por uma vista soberba para a Acrópole e por um ecrã com quase tantas polegadas como a parede do escritório. “Eu sei, é obsceno”, diz Dourou, de 40 anos. “Foi uma herança dos nossos antecessores: um prédio de oito andares para 100 funcionários. Pagamos uma renda de 80 mil euros mensais. Já estamos a tratar de sair daqui”.

Para chegar ao gabinete de Governadora de Ática – inclui Atenas e parte dos subúrbios -, Dourou, segunda figura de maior relevo do Syriza (partido de esquerda favorito à vitória nas eleições gregas), percorreu mais que uma maratona. Na campanha, andou de porta em porta numa área que diz ser “maior que Malta e o Liechtenstein, quase do tamanho da Bélgica”. Levava uma mensagem a mais de dois milhões de gregos: “Se gostam da vida que têm, não votem em mim”. Em Maio de 2014, venceu com 50,8% dos votos. Pelo poder que o cargo acarreta, chamam-lhe “mini-Primeira-Ministra”, um prelúdio de um Parlamento liderado pela esquerda radical.

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“O meu país está em guerra”, anuncia, depois de servir dois cafés e de se recostar numa cadeira preta. “Há uma enorme crise humanitária para resolver e temos de devolver credibilidade à política, porque já ninguém acredita no sistema”. Dourou começa a enumerar: 25% de desemprego (mais de 60% entre os jovens), 6 mil suicídios, 300 mil famílias sem luz nem aquecimento. “São as consequências catastróficas da austeridade implementada no meu país. É por isso que a vitória do Syriza no próximo domingo vai ser um momento histórico. Representa uma lufada de ar fresco não só para a Grécia, como para todo a Europa”.

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Dourou começou o mandato com políticas de cariz humanitário: criou bancos alimentares para as crianças desfavorecidas, subiu o orçamento para causas sociais de 1,9 para 13,5 milhões de euros e devolveu a eletricidade a 38 mil casas. Tudo a partir de um orçamento de 575 milhões de euros, aprovado pela União Europeia. “A prova de que os programas do Syriza podem passar por Bruxelas”. Simultaneamente, a sua promessa de luta contra a fraude e corrupção, deixou muitos funcionários e empresários de respiração suspensa. Dourou despediu e processou empregados que obtiveram o trabalho com credenciais falsas e cancelou todos os contratos municipais de tratamento de resíduos: “No meu país, ainda queimamos e enterramos lixo. Indiquem-me um país da União Europeia que o faça? É uma prática de terceiro mundo”.

Para ela, a crise não é novidade. Filha de um polícia “que foi descalço para a escola”, nunca teve uma vida folgada. “Eles [os membros do Nova Democracia, o partido de direita liberal no Governo] é que sempre tiveram privilégios. Nós, não. Conquistamos as coisas com trabalho árduo. Essa é uma grande diferença entre nós”, diz. Dourou continua a viver em Aigalio, o seu bairro de infância no oeste de Atenas, de onde saiu apenas para tirar o mestrado em Inglaterra. Fala cinco línguas, incluindo turco. Ostenta o orgulho pela educação que os pais lhe permitiram ter na única fotografia exposta no gabinete, em que surge ao lado da mãe no dia da tomada de posse.

Conhecida pela sua compostura (ficou célebre por ter ficado impávida e serena quando um deputado do partido ultranacionalista Aurora Dourada lhe atirou água para a cara num direto televisivo), a Governadora de Ática afirma não se exaltar nem quando, repetidamente, a confrontam com o radicalismo do Syriza. Mesmo que a paciência já não seja muita. “Para não dizerem que sou uma cabra, um demónio de esquerda, até costumo usar argumentos de direita. Quem arruinou o investimento privado na Grécia? Quem conduziu ao encerramento de 200 mil PME’s? Fomos nós, os radicais de esquerda, ou as medidas de austeridade do atual Governo?”, questiona. “O que nós propomos desde o início é uma aproximação ao projeto social europeu, que esta nova geração de líderes esqueceu por completo”.

O programa do Syriza contempla a implementação de reformas com um custo de 12 mil milhões de euros: aumento do salário mínimo, restabelecimento de energia elétrica, perdão de dívidas a empresas e cancelamento do corte das pensões. Os oponentes dizem ser impossível obter liquidez para tais medidas com uma dívida de 170% do PIB e com uma grossa fatia do empréstimo por pagar à troika. O Syriza responde com uma proposta de perdão parcial de dívida, como compensação dos danos infligidos à Grécia pela invasão do III Reich, e com a taxação em 75% de rendimentos anuais superiores a 500 mil euros. “O sistema fiscal na Grécia muda a cada ano e meio. Ninguém investe com um sistema tão instável. Temos de começar por estabelecer taxas de impostos sólidas. E quanto aos oligarcas e milionários, não nos preocupam muito. Muitos deles, como os donos dos barcos de carga, já têm as empresas registadas no estrangeiro. Não podemos fazer muito em relação a isso”.

Fora do seu horizonte, está a saída da Grécia da União Europeia. Dourou diz ter-se rido quando Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu, afirmou que “os estatutos da zona euro não contemplam a saída de um Estado-Membro”. “Perdemos tanto tempo aqui a discutir esse assunto, que podia ter sido útil para resolver os problemas dos gregos, quando nem sequer é assunto”.

No entanto, não afasta nenhum cenário, recusando-se a revelar o conteúdo das negociações que o Syriza, caso vença no domingo, irá ter com as instituições europeias. Diz apenas que é inútil fazer pré-anúncios – se a Grécia fica ou sai do euro -, sem sequer terem começado as reuniões. “Quando se negoceia com a senhoria a renda de um apartamento também não sabemos à partida se queremos ou não ficar com a casa”.

40% dos membros do Syriza são eurocéticos. No seio do partido, muitos temem que este ceda às condições impostas por Bruxelas e perca a sua identidade de esquerda. Dourou, o seu único elemento em funções administrativas de relevo, desvaloriza. “Quando eu e o Alexis Tsipras [líder do Syriza] andávamos a viajar pela Europa e pelos Estados Unidos, tive a oportunidade de conhecer professores como Noam Chomsky”, diz. “Cheguei à conclusão de que é fácil ser professor ou analista político, mas eu preferi ir para o campo e passar à ação. Escolhi entrar nesta guerra e não ficar a ver o meu país morrer, correndo o risco de ter de fazer algumas reformas que violem uma linha ideológica limpa”.

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Dourou puxa mais um cigarro. Diz que é tabaco grego, dos de qualidade, daquele que só os velhos fumam. Dá a primeira baforada. “Sempre que um camarada me acusa de ser reformista, pergunto-lhe o que fez hoje para ajudar a Grécia”. E isso não pode criar problemas no interior da Coligação? “Estamos juntos desde 1995. Se há quem tenha experiência em coligações, somos nós”.

A assessora interrompe. Dourou tem outros compromissos. Antes de se despedir, pergunta como estão as coisas em Portugal, se o fenómeno Podemos já contagiou os vizinhos: “Não? Pode ser que algo mude nos próximos meses”, diz. “Espero que vocês saibam que nas reuniões que tive em Bruxelas, eles usam sempre Portugal como um bom exemplo de como a austeridade funciona numa crise da dívida. É bom que estejam conscientes disso. Acho que é um dos únicos casos em que ser avaliado como bom aluno dá uma reputação terrível”.