Título: O Bicho-da-Seda
Autor: Robert Galbraith (J.K. Rowling)
Editora: Presença
Páginas: 496
Preço: 21,90€

Capa O Bicho da Seda

Depois do mais que descritível entusiasmo que acolheu o seu romance ‘para adultos’ A Casual Vacancy, J. K. Rowling deitou pacientemente mãos à obra de uma segunda carreira literária (como se dela precisasse) escrevendo sob pseudónimo um romance policial que teve em português o título de Quando o cuco chama. O segredo da verdadeira identidade de ‘Robert Galbraith’ não durou muito e depressa toda a gente ficou a saber quem se escondia sob aquele nome até então – e por pouco tempo – desconhecido: era a escritora que em menos de dez anos a série dos Harry Potter fizera riquíssima e famosa. A crítica e o público sorriram a essa nova encarnação da autora.

O Bicho-da-Seda é o segundo romance policial assinado por Robert Galbraith. Dado o êxito de Quando o cuco chama – confirmado nesta reincidência – estamos em vias de ter uma nova série (está a caminho um terceiro ‘episódio’). É previsível que o novo empreendimento de J. C. Rowling continue a ser bafejado pela fortuna. A julgar por O Bicho-da-Seda, a autora sabe bem o que faz. É um entretenimento inofensivo e bem arquitectado que sem acrescentar grande coisa ao património literário da humanidade foi cozinhado com toda a competência que podíamos esperar. E a notoriedade e argúcia comercial de J. K. Rowling farão o resto.

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Estes livros de ‘Robert Galbraith’ são protagonizados por um detetive privado e pela sua assistente. Segue assim a tradição das ‘duplas’ que é tão velha como o próprio género, tanto na versão americana como na inglesa. É certo que há excepções – a mais notória é a do Philip Marlowe do justamente venerado Raymond Chandler; mas todos nos lembramos de que Sherlock Holmes tem o seu Dr. Watson, Nero Wolfe o seu Archie Godwin, Poirot o Capitão Hastings. O Sam Spade de O Falcão Maltês já tinha a fiel Effie Perrine, Mike Hammer – a sua voluptuosa Velda. Podíamos continuar. (Nos livros de A. A. Fair há um duo de detectives – cognominado ‘improvável’ nesses anos já distantes – composto de uma chefe – a perentória Bertha Cool – e do seu subordinado e depois sócio Donald Lam. A. A. Fair também foi um pseudónimo, usado pelo Erle Stanley Gardner que os livros protagonizados por Perry Mason celebrizaram. Troco os Perry Mason por qualquer dos Cool & Lam, diga-se de passagem.)

O detetive de ‘Robert Galbraith’ chama-se Cormoran Strike. É um antigo combatente inválido, razoavelmente condecorado. Lutou no Afeganistão, por sinal, como mais de cem anos antes o Dr. Watson, e coxeia, como o médico militar amigo de Holmes. No campo de batalha afegão, perdeu metade de uma perna, o que também nos dá direito a muitos pormenores sobre as misérias e servidões do uso de próteses. Luta com apertos de dinheiro – sem absoluta necessidade, pois neste caso é filho bastardo de um rocker milionário – mas porque não quer dever nada a ninguém. É mais uma tradição do género que uma falha qualquer, física ou moral, caracterize o herói. Mas também uma fraqueza pelos humilhados e ofendidos desta vida e – à falta de outra – uma moral profissional à prova literalmente de bala.

A assistente de Strike, Robin Ellacott, é uma rapariga linda e tem noivo mas há entre ela e o patrão a sugestão de uma reprimida atração. Os amores menos platónicos de Cormoran Strike são infelizes e com meninas da alta sociedade, como eram os de Philip Marlowe. Para completar a receita, ‘Galbraith junta-lhe aqueles ingredientes que parecem hoje indispensáveis: os horripilantes requintes de malvadez do criminoso, expostos em toda a sua crueza anátomo-patológica, e um módico de perversões sexuais e de personagens grotescos. Também não é propriamente novidade. Estamos assim em terrenos conhecidos. Mas nós somos crianças, pegamos nestes livros para que nos contem sempre a mesma história.

O Bicho-da-Seda passa-se no meio literário e jornalístico londrino que a autora conhece bem, o que lhe acrescenta o seu picante. E é enfaticamente colocado sob o signo do teatro inglês dos séculos XVI e XVII. Aliás, a cena do crime parece ‘uma encenação teatral’. Todos os capítulos são encabeçados por citações de um catálogo dos grandes nomes desse teatro – com predomínio dos autores do período que os ingleses designam por ‘jacobeano’. Na peugada de Shakespeare, mas sem o seu sólido arcaboiço teológico (católico?) e sem o seu génio, foi um teatro que se caracterizou, disse um crítico, pelo seu ‘sensacionalismo, os seus enredos forçados’ e por ‘dispositivos dramáticos que sacrificam ao nosso mero divertimento qualquer integridade ou sentido’. Será a autora a piscar-nos o olho? Já que estamos a falar desta matéria, o facto é que não será descabido aplicar a muita da literatura policial e criminal moderna aquilo que um reputado estudioso escreveu sobre essa ‘decadente’ dramaturgia pós-isabelina. Diz Irving Ribner que nela se espelha ‘a busca de uma moralidade num mundo em que os fundamentos tradicionais parecem já não ter validade’. Não há nada de novo sob o sol. A luz vai mudando porque todos os dias lhe damos a volta.

A tradução em português de O Bicho-da-Seda é estranhamente errática, como o marxismo do ministro das finanças grego. Vai do melhor ao quase incompreensível. A este respeito, quero fazer uma pedante observação de erudição menor: estou em crer que, salvo melhor opinião, o jogo de palavras com o nome Lord Parker a quem um jornalista chama Lord Porker não se refere a que ele seja ‘mentiroso’ mas à sua intensa actividade amorosa; o pudor impede-me de explicar melhor.