Praça do Bocage. Frio, vento e uma ameaça vinda de cima. Nada que preocupe Paula Pereira, 46 anos, organizadora da Corrida Noturna. “Hoje é dos dias em que está mais agradável. Uma vez tentei desmarcar uma corrida porque estava a chover torrencialmente e houve alguém que mandou mensagem no Facebook a dizer que já estava aqui. E tive de vir.” Mesmo assim, habituados a correr contra as baixas temperaturas, os corpos tremem de frio. Homens e mulheres vão chegando ao ponto de encontro visivelmente contraídos, as mãos nos bolsos e os fechos corridos até ao pescoço. Abrigados debaixo do toldo de um café, saltitam para bombear sangue e motivação. E conversam. “Antes de começarmos a correr, juntamo-nos sempre aqui uns minutos antes”, diz Paula. “Houve muita gente que se conheceu aqui. Já há grandes amizades e até relações amorosas.”

As corridas começaram em junho de 2013. Esta noite, correm pela 132ª vez. A organizadora explica que a ideia surgiu depois de ter visto uma reportagem televisiva sobre corridas em Leiria. “Por que não fazer isto também em Setúbal? Temos um espaço tão bonito à beira-rio. Lancei a ideia para o Facebook, e pegou.” Na primeira edição correram 40 pessoas. Até se juntarem mil corredores, foi um passo curto.

Adelaide Palma, 44 anos, amiga de Paula, é uma dessas pessoas. Enquanto pratica o aquecimento, conta que aderiu à iniciativa pelo “gosto pelo desporto e pelo convívio”. “A Corrida Noturna, para mim, foi mesmo a impulsionadora das corridas. Até à data, como fazia ginásio, não me passava pela ideia começar a correr. Mas desde que vim, não consigo parar.” “Tornou-se um vício” sair de casa à noite para um percurso de 50 minutos, enquanto os setubalenses se enroscam no sofá e ligam os aquecedores.

À hora de jantar, o ar gélido afasta qualquer um da rua. Menos os 30 corredores presentes no ponto de encontro, na Praça do Bocage. “Dos zero aos oitenta, permitimos todos os ritmos: andar, correr, mais depressa ou mais devagar”, explica Paula, que só não corre devido a uma lesão no joelho. Hoje, segue a passo de marcha e garante que “as mulheres vão para conversar” e também para “correr a sério” com os homens, no pelotão da frente.

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Isabel Guerreiro, 62 anos, vai mais atrás. Equipada de ténis, meias quentes e um casaco desportivo, não deixou de passar o batom discreto nos lábios e de conservar intacto o cabelo arranjado. “Corro há mais de um ano e também faço hidroginástica e ginástica.” Dispensa a novela, toma conta do neto de 14 anos e o marido, que cuida de uma horta durante o dia e tem “pouca genica para correr”, espera por si no carro, cruzando palavras no jornal.

O objetivo da organização sem fins lucrativos é “tirar as pessoas do sofá” e “preencher uma lacuna em relação ao atletismo e ao desporto” praticados em Setúbal.

“Quem é que disse que eu estava no sofá? Eu nem tenho sofá.” É assim que reage Pedro Sousa, 58 anos, à questão sobre o que o motivou a aderir às corridas. Aposentado da administração pública, afiança que a corrida lhe está na massa do sangue há 30 anos. “Apareci aqui para dar o exemplo e partilhar a experiência com algumas pessoas que até nunca tiveram hábitos de desporto.” O modo de vida desportivo nota-se à distância: ténis, calções de licra e uma camisola térmica não faltam no equipamento.

Reconhecendo a moda em que a corrida se tornou, Pedro Sousa – que para além da corrida urbana também participa em corridas de montanha e competições profissionais – realça que “a grande massa de pessoas a participar em corridas está na média dos 30-50 anos”, pelo que faz falta “trazer juventude do secundário”. Mas deixa o conselho: “Não vale a pena mudar radicalmente os hábitos.” Primeiro, diz, há que ter “uma experiência de caminhada com amigos, explorar e sentir o prazer de caminhar. O correr vem por acréscimo. A curto e médio prazo, penso que mesmo as pessoas mais renitentes – que pensam que os caminheiros e corredores são malucos – vão mudar de ideias.”

Paula Pereira considera a população do município “ativa”, sobretudo se as atividades físicas forem gratuitas. A Corrida Noturna tem a mais-valia de ser voluntária, portanto é alheia a interesses comerciais. E vai tomando o pulso à cidade. “A baixa não está morta como as pessoas dizem. A Corrida
Noturna nunca para”, assegura Paula, terminando: “A Adelaide está farta de dizer ‘Ó Paulinha, tu não acabes com as corridas! Isto foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida!’ E como ela, já outras pessoas têm dito o mesmo.”

Corrida Nocturna — Setúbal
Sem inscrição
Quando: Terças às 21h15 e Quintas às 20h30
Percursos: de 4 e 6 Km
Local de encontro: Praça do Bocage