Primeiro, a história real. Em 1532, um mercador alemão chamado Hans Kohlhase que se dirigia à Feira de Leipzig para fazer negócio, viu dois dos seus cavalos serem confiscados por um nobre, supostamente como pagamento para um indispensável salvo-conduto através da Saxónia. Kohlhase apelou para os tribunais e para as autoridades em busca de justiça, mas sem sucesso. Sentindo-se injustiçado, o mercador reuniu um grupo de pessoas, entre camponeses, e começou a espalhar o terror na região. Lutero apelou pessoalmente a Kohlhase, por carta, para que parasse com a violência, mas sem sucesso. Em 1540, o mercador foi finalmente capturado, julgado e executado na roda por esquartejamento. A sua figura perdurou na imaginação colectiva alemã como um símbolo do individualismo burguês em ascensão no tempo da Reforma, desafiador da velha ordem social aristocrática, o paradigma do homem recto e honrado que se revolta por uma causa justa, e leva a sua sede absoluta e cega de vingança até às últimas e mais terríveis consequências, convencido da sua razão até ao derradeiro momento.

Rebaptizando-o Michael Kohlhaas, o escritor alemão Heinrich von Kleist fez dele o inflamado protagonista da sua novela homónima, publicada em 1810, servindo-se da personagem para transmitir as suas ideias políticas anti-francesas e nacionalistas, e tornando-o simultaneamente num herói romântico por excelência. Entre outros escritores que foram fascinados por Michael Kohlhaas graças à novela de Kleist, contam-se Goethe, Robert Burns e Franz Kafka, que a contava entre os seus livros favoritos. Em 1969, Volker Schlöndorff adaptou a obra ao cinema em “Michael Kohlhaas – O Rebelde”, com o inglês David Warner no papel principal e Anna Karina no da sua mulher, Elizabeth. O filme competiu no Festival de Cannes, tal como a nova adaptação do livro de Kleist, “A Vingança de Michael Kohlhaas”, do francês Arnaud des Pallières (estreia-se hoje), que deu ao dinamarquês Mads Mikkelsen o papel do título.

“Trailer” de “A Vingança de Michael Kohlhaas”

Des Pallières transpôs a acção da Alemanha para a França do século XVI e realizou um filme austero, lacónico e grave, por vezes à beira do hieratismo, à imagem e semelhança da personagem tal e qual Mikkelsen a interpreta. “A Vingança de Michael Kohlhaas” remete para o ambiente dos “westerns” rudemente paisagísticos, passados numa natureza que impressiona e esmaga, mas – e deliberadamente -, não tem batalhas hollywoodescas, espectaculares e superpovoadas, nem recorre a efeitos pessoais que distraiam o espectador do essencial. E o essencial é a personalidade tragicamente desafiadora e determinada de Kohlhaas (que, ao contrário da figura histórica, não permite que os seus homens se entreguem à pilhagem nem recebam ajudas monetárias de ninguém, “porque quem pilha são os senhores e nós não pedimos nada, apenas justiça”) e a sua obsessão pela justiça e oposição férrea à iniquidade, aqui acentuadas pelo assassinato da mulher, após esta ter ido interceder por ele junto da princesa de Berlim. Obsessão essa que começa por ser objecto da admiração da filha, que no final se transforma em crítica das acções do pai.

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https://youtu.be/PdX0fy8so6U

Entrevista com Mads Mikkelsen

https://youtu.be/daihraGE9-g

Entrevista com Arnaud des Pallières

Este juízo crítico “à forma que toma a revolta deste homem”, como disse o realizador numa entrevista, é a grande novidade desta nova versão cinematográfica do livro de Kleist. O que não impede que, no final, e apesar de tudo, a simpatia da fita, tal como a do espectador, continue do lado de Kohlhaas, que consegue uma meia vitória: perde a vida mas salva a honra e obtém justiça. Rodeado de sólidos actores como Bruno Ganz, Sergi Lopez ou Denis Lavant (no papel de Lutero), Mads Mikkelsen compõe um Kohlhaas de máscara estóica, impassível e inexoravelmente decidido, um anjo da vingança de espada na mão, que anuncia tempos novos mas ainda pertence ao mundo medieval. E que, como Kleist escreveu, mostra como “a injustiça destrói o mundo”.