Não é assim tão incomum, tão de torcer o nariz e erguer a sobrancelha desconfiada, ouvir alguém dizer que, em novo, e quando jogava à bola nas escolinhas de um qualquer clube, jogou contra este ou aquele craque. Há até as tais história de encantar, típicas de Taça, que ajudam uma equipa das distritais a fintar umas quantas eliminatórias até embaterem contra um tubarão, dos grandes. De vez em quando lá acontece: quem tem jeito para jogar à bola e faz do futebol um hobbie choca com quem faz dele vida e profissão. E quando há destes embates a diferença costuma vir em forma de goleada. Lee Casciaro sabe bem o que isso é.

Vai com 33 anos feitos na idade e contados nas pernas que, desde setembro, servem mais correr atrás de quem tem a bola e não para correrem com ela. Foi a partir daí que Gibraltar passou a entrar no futebol da UEFA, a jogá-lo a sério, para contar, e, pela primeira vez, a participar nas contas da qualificação para um Europeu. Só que Gibraltar, o Rochedo, como lhe chamam por culpa da montanha que por lá se ergue, e apesar da vontade, nunca tratou o futebol por tu e só agora, desde há uns meses, começou a dividir relvados com seleções que lhe deram as tais goleadas. E Lee Casciaro também sabe bem o que isto é.

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Mas não se lembrou disso quando, no domingo, aos 20’ da partida contra a Escócia, em Glasgow, a bola foi passada na sua direção quando já bem perto estava da baliza. “Já sabia o que ia acontecer. Rematei a bola com o pé direito e com a maior força que consegui”, admite. E lá foi ela, rasteira, aninhar-se nas redes escocesas para despertar “uma sensação surreal”. De fugir à realidade, como insiste Lee, em casa e ao telefone com o Observador. Porque, de repente, naquele momento, acabava de ser o primeiro homem a marcar um golo num jogo oficial pela seleção de Gibraltar, que nem um país é — está sob jurisdição do Reino Unido. E agora, Lee Casciaro também já sabe o que é “um sonho tornado realidade”.

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Garante, sem demora, que “é algo que nunca” esquecerá “até ao fim da vida”. Teve de esperar até aos 33 anos para guardar esta memória, e logo uma que ficou gravada bem fundo. “Foi o golo do empate, e não o golo de honra, num 4-1 ou 5-1. Foram muitas emoções porque, na altura, não havia goleada”, explica, ao falar do momento em que todos os restantes dez jogadores de Gibraltar sprintaram até Lee e se “juntaram num abraço”. De repente, a pior seleção do ranking da UEFA (54.º) estava empatada em casa da 23.ª classificada. Mas foi coisa efémera — com a hora e meia de bola a rolar terminada, um 6-1 deu a vitória à Escócia.

Mas Lee Casciaro fez contra os escoceses o que “qualquer miúdo em Gibraltar sonha fazer” — jogar e marcar um golo pela seleção. “Esperámos tantos anos por isso que, quando foi o sorteio, todos sentimos que estávamos a concretizar um sonho de miúdo. Toda a gente quer jogar contra os campeões do mundo e até isso já fizémos”, diz, ao lembrar a partida, a quarta que Gibraltar jogou no Grupo D de qualificação que, em novembro, terminou um 4-0 para o lado da Alemanha. Antes houve um 7-0 (Polónia), outro 7-0 (Irlanda) e um 3-0 (Geórgia). Tudo derrotas. “Tenho 33 anos, sim, mas sinto-me sortudo por ter a oportunidade de jogar contra estas equipas”, garante Lee.

Sente-se assim, sobretudo, porque há 12 horas de cada dia em que o futebol não é o que faz da vida. “Trabalho no Ministério da Defesa de Gibraltar, como polícia. Entro às 8h e saio às 20h”, revela, dizendo que já o pai era polícia e que, com tanto tempo fardado, resta-lhe treinar à noite, “sem problema”. Caso não haja treino, ou não consiga lá chegar a tempo, enfia-se num ginásio ou vai correr. “Normalmente corro, porque custa dinheiro estar sempre a ir ao ginásio”, explica. E jogar futebol em Gibraltar ou, neste caso, ser um dos melhores jogadores do território, dá em troca “menos de mil euros por mês”, garante Lee Casciaro. “Não chega para cuidar da minha família. Por isso é que tenho o meu trabalho e o futebol é como um part-time. Mas mesmo que não me pagassem, jogaria na mesma”, assegura, com o sorriso a notar-se na voz.

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E se hoje há dinheiro para haver salários é porque, em maio de 2014, o Tribunal Arbitral do Desporto deu razão a Gibraltar e obrigou a UEFA a aceitar o território — a entidade sempre o rejeitara devido à discussão que Espanha e Reino Unido ainda mantêm sobre quem deveria mandar ali. Até aí, portanto, o futebol nem sequer estagnou porque quase nunca chegou a evoluir. “O meu clube, o Lincoln Red Imps, ganha o campeonato há 13 anos seguidos e já ficámos quase quatro anos sem perder um jogo”, indica Lee, dando um exemplo. “O nível subiu desde que entrámos na UEFA”, reconhece, embora confesse que Gibraltar “só terá alguma hipótese de vencer contra a Geórgia”, país contra o qual perdeu (3-0) em Faro, no Estádio do Algarve onde tem casa emprestada para realizar os jogos de qualificação para o Europeu de 2016.

Antes de saber o que era ser goleado, Lee Casciaro já sabia o que era golear. E sente mais gozo quando está do lado da baliza que deixa entrar a bola mais vezes. “A prioridade é ir melhorando e aprender a cada jogo que façamos”, defende quem, aliás, joga com os dois irmãos, Mark e Kyle, na seleção e no clube: “Algo que não se vê a acontecer muitas vezes.” Com 33 anos Lee só parece não saber uma coisa — até quando vai jogar. Nem hoje se atreve a adivinhar. “A última vez que respondi a essa pergunta rompi o ligamento cruzado do joelho. Foi o ano passado. Disse que ia jogar até aos 40. No jogo a seguir lesionei-me e fiquei de fora durante quatro meses e meio”, conta, a rir-se. Por isso retirámos a pergunta e deixámo-la para uma próxima vez.