Título: Mal-entendido em Moscovo

Autor: Simone de Beauvoir (tradução de Sandra Silva)

Editora: Quetzal Editores
Páginas: 96
Preço: 13,30€
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Simone-Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir, vulgo Simone de Beauvoir, para os íntimos ‘Castor’, foi uma típica intelectual francesa. Nascida em princípios do século XX, foi, de resto, quase contemporânea da invenção do ‘intelectual’, criado como substantivo em fins do século XIX. No dicionário de Littré dos anos de 1860 ainda só existe como adjetivo: ‘relativo ao intelecto’. Na sua nova classe gramatical, data do tempo do famoso caso Dreyfus. Alguns patriotas da época usaram-no para ridicularizar os ‘intelectuais’ que defendiam a inocência do célebre injustiçado e, de caminho, atacavam as instituições militares. A esquerda, de qualquer modo, arvorou-o em título de glória e de superioridade moral e atestado de autoridade para dissertar sobre tudo e mais alguma coisa. ‘Intelectual de esquerda’ tornou-se praticamente um pleonasmo. ‘Intelectual de direita’ é quase uma contradição nos próprios termos. Não que a inteligência ou a cultura sejam património da ‘esquerda’. É fácil demonstrar o contrário. Mas, como diz o nosso ditado, presunção e água benta cada um toma a que quer.

Mal-entendido em Moscovo, uma memória ficcional de publicação póstuma (1992), é publicado ao mesmo tempo que a reedição de O Segundo Sexo (também pela Quetzal Editores), um volumoso discurso sobre a ‘condição feminina’ escrito em fins dos anos 40 do século XX. Os dois livros cobrem uma grande parte das várias facetas de Simone de Beauvoir, cuja vida e obra atravessam o meio do século XX, alguns dos seus combates culturais e das suas contradições. Educada em colégios de freiras e devota, cedo se tornou ateia militante; ícone do feminismo, ficou para sempre, por ironia do destino, amarrada à sua relação conjugal vitalícia com Jean-Paul Sartre e ao ‘tórrido’ romance que manteve com o escritor americano Nelson Algren (de que ela gostava, pecaminosamente, de se chamar ‘mulher’, com anel no dedo). A sua relação com Sartre, diz a badana de Mal-entendido em Moscovo, pautou-se por padrões de ‘abertura e honestidade’, a que outros chamariam frieza, despudor e promiscuidade – e num certo caso as autoridades académicas chamaram desvio de menores. Não foi decididamente ‘a menina bem comportada’ do título irónico do primeiro dos seus volumes de memórias.

Entre os anos quarenta e 1986, ano em que morreu, Simone de Beauvoir escreveu vários livros autobiográficos, romances, novelas e contos, ensaios filosóficos, ensaios políticos – o seu ‘tratado’ feminista. Desempenhou um papel importante na revista Les Temps Modernes onde se diz (ela própria o disse, não o mandou dizer por ninguém) que foi muitas vezes mais ativa e influente do que o próprio Sartre. Na qualidade de ficcionista – quase sempre mais ou menos memorialista – foi um autor consagrado e muito lido, ou pelo menos muito admirado, pela sua geração. Em 1954 recebeu o prémio Goncourt por Les Mandarins (a sua correspondência com Algren, publicada muito depois da morte dela, documentou com pormenores confrangedores a relação entre os dois, retratada nesse romance). Formada em filosofia, Simone de Beauvoir conquistou, ‘tardiamente’, o direito a ser considerada uma ‘filósofa’, mais compreensível, clara e consistente do que Sartre. É uma rara distinção num mundo predominantemente masculino.

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Ao que nos diz a prefaciadora de Mal-entendido em Moscovo, esta novela foi escrita nos anos 60 embora só publicada em 1992. Simone de Beauvoir não a quis publicar no livro a que inicialmente se destinava. Conta uma visita à União Soviética e um insignificante mas portentoso ‘mal-entendido’ conjugal de um casal de professores reformados, como na vida ‘real’ foram ela e Sartre. Os dois fizeram também por várias vezes essa romagem. Espelhava, talvez, com demasiada clareza o desencanto de velhos amigos da revolução comunista. Afinal a história não lhes dava razão? Ela queria convencer-nos que sim – e parecia convencida disso. (Le futur me donnera raison!, ‘O futuro vai dar-me razão!’, escreveu sem falsa modéstia em 1963). Ou talvez, de facto, como indica a prefaciadora, o contexto político da novela obscurecesse – tornando a novela menos adequada a essa colecção de narrativas, La Femme rompue – uma obsessão de Simone de Beauvoir que é de facto o tema central desta ‘ficção’: as pragas do envelhecimento (sobretudo para uma mulher?). Seja como for, está bem patente na concisão de Mal-entendido em Moscovo a lucidez psicológica que distingue as melhores obras literárias da autora.

O reeditado Segundo Sexo (em dois volumes) é uma espécie de precoce e prolixo compêndio dos argumentos do feminismo contemporâneo. Ao todo, são quase mil páginas, enfadonhas e enoveladas muitas vezes, cuja lógica está longe de ser sempre férrea, como não era a do ‘existencialismo’ de que ela foi epígono e Sartre pontífice e que também aflora em certas teses deste livro. Impressiona que sendo tantas e de tal ordem as autoridades que convoca para mostrar como vêm de longe e são universais o retrato da mulher e o ‘patriarcado’ que ela detesta e combate, isso não lhe tenha dado que pensar sobre os fundamentos e ilações do seu feminismo.

São dois livros que se completam para ajudar a conhecer e a compreender na sua ambiguidade Simone de Beauvoir e o pequeno mundo de certa intelectualidade parisiense do pós-guerra, que teve à época, e continuou a ter depois, uma desusada influência. O epitáfio mais cruel de Simone de Beauvoir foi escrito por Charles Dantzig: ‘No fim da sua vida, Simone de Beauvoir era passeada como um ídolo oriental para dar a sua opinião sobre tudo. E dava-a, infelizmente.’ Não se aplica só a ela.