Os mitos engrandecem as histórias, agigantam as almas de quem as escuta. Colam a melancolia ao desejo, à ambição desmedida, ao sonho. Os jogadores do FC Porto, quem sabe inspirados pela aventura de 1987, entraram no relvado do Dragão e encolheram os ombros perante o gigante que tinham pela frente e decidiram que queriam ser protagonistas, guerreiros com uma causa. Aquela gente vestida de azul e branco estava empenhada em deixar o nome vincado nesta lengalenga dos maiores do Velho Continente. E foi bom de ver.

Num jogo de loucos, com muitos erros, qualidade, momentos de génio, combinações, movimentos que mais pareciam sair de um musical, o FC Porto venceu o Bayern Munique por 3-1 na primeira mão dos quartos-de-final da Liga dos Campeões. Os golos saíram do pé direito de Quaresma (2) e da canhota de Jackson.

FC PORTO: Fabiano, Danilo, Maicon, Indi, Alex Sandro, Herrera, Casemiro, Óliver, Quaresma, Brahimi, Jackson

BAYERN MUNIQUE: Neuer, Rafinha, Boateng, Dante, Bernat, Xabi Alonso, Lahm, Gotze, Thiago Alcântara, Muller, Lewandowski

Quando no ano sabático em Nova Iorque Guardiola jantou com Kasparov e o génio do xadrez lhe disse que era impossível vencer Magnus Carlsen (futuro campeão da modalidade), o catalão ficou intrigado. O russo garantia que tinha condições para vencer o jovem norueguês, mas era “impossível”. Impossível. A palavra não encaixava no perfil de campeão eterno, de lenda. Guardiola insistiu, bateu bolas, talvez quisesse saber alguns segredos que se escondem nos labirintos das mentes brilhantes. Escravo da perfeição, apaixonado pelo estilo e homem que questiona tudo, Pep não terá ficado esclarecido…

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Julen Lopetegui adotou o mesmo discurso e identidade de jogo. Não é copiar, mas quem leu as cartas de amor constantes à doutrina de Guardiola no seu blog “Lopeteguía” entende que há um certo fascínio. Afinal, ele foi o selecionador espanhol sub-19 e sub-21 que ganhou dois Campeonatos da Europa, com um estilo de jogo semelhante ao do Barcelona de Pep.

Quem via o ambiente no Estádio do Dragão, embalado por aquele cântico furioso-apaixonado “Porto! Porto! Porto!”, sentia que algo de especial podia acontecer. A pressão dos homens da casa não enganava: queriam bater o pé ao gigante bávaro. E bastaram dois minutos para algo acontecer. Xabi Alonso, lento e mole, deixou-se surpreender por Jackson quando queria desenhar o primeiro ataque do Bayern — fica a dúvida se houve falta ou não. A seguir, o avançado investiu em direção a Neuer e, segundo o árbitro, o guarda-redes alemão derrubou-o: penálti e… cartão amarelo (mais uma dúvida). Ricardo Quaresma começou o seu conto de fadas aqui, assumindo o penálti e enganando Neuer, 1-0.

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O dois-zero chegou pouco depois. Mais uma asneirada da defesa alemã: desta vez foi Dante que perdeu para Ricardo Quaresma, já muito perto da área do Bayern. O número 7 seguiu a toda a velocidade, a fazer lembrar os tempos do Mustang, esperou Neuer e tocou com muita pinta com a trivela, 2-0. Que grande arranque do FC Porto, que pressionava a todo o campo e não tremia perante um colosso à frente. Sim, faltaram Ribéry, Robben, Schweinsteiger, Alaba e Javi Martínez, mas havia muitos outros…

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Lá está, apetece lembrar a história do “impossível”. Perguntem a Quaresma, Óliver, Danilo, Jackson o que é que essa palavra significa. Devem desconhecê-la. Jackson esteve ausente várias semanas, mas voltou para o duelo com os alemães, e em boa hora. O colombiano tinha várias tarefas: marcar golos, segurar a bola para permitir que a equipa respirasse e subisse, mas também, e tão importante, fechar os caminhos para Xabi Alonso. O avançado foi um defesa durante muito tempo, com pujança e sacrifício. Foi aí que o Bayern começou a vacilar: sem Xabi a fazer de cérebro, Dante e Boateng teriam de assumir a responsabilidade de começar as jogadas.

Este duelo, que reunia tantas estrelas, às vezes parecia um musical ou algo mais clássico. Tem muito que se lhe diga isto de ver como Óliver, sublime e elegante, toca na bola com os dois pés, arruma a casa e usa os rivais para fazer rotundas, observar a flexibilidade dos rins de Brahimi, a ousadia e juventude (mental) de Quaresma, a maturidade de Jackson e a coragem de Lopetegui. Tudo isto merecia uma senhora banda sonora, como naqueles momentos épicos dos filmes de guerra. E, naturalmente, com uma qualquer frase a roçar o cliché como “a liberdade pura é ter o destino nas mãos”. Foi exatamente isso que o Porto esboçou e concretizou.

Os homens que chegaram da Baviera estavam com problemas. Xabi estava engolido na teia defensiva liderada por Jackson. Thiago e Lahm não sabiam como pegar no jogo. Götze, Müller e Lewandowski recebiam poucas bolas. A famosa posse de bola começou a surgir a partir do minuto 20: aos 35′ os alemães registavam 66% de posse de bola. Mas ideias, arte e engenho para enganar Martins Indi e companhia é que estava complicado. Pep Guardiola levava a mão à face muitas vezes. Chegava a sorrir, impotente, quando via que os jogadores perdiam bolas que nunca perdem, uma e mais outra vez. Era um pesadelo, senhoras e senhores.

Numa fase em que os jogadores do FC Porto pareciam começar a perceber o que se estava a passar, recuaram as linhas, achando porventura que era assim que iam travar o golo do Bayern, negando a estratégia inicial. Às vezes é mais forte do que os jogadores, e Lopetegui pedia que pressionassem mais à frente. Fernando Pessoa outrora escreveu que “os deuses são deuses porque não se pensam”, mas este FC Porto, que parecia saído do Olimpo, começou a pensar-se e a descer à terra — ganhou medo. O dois-um aconteceu aos 28′, após cruzamento de Boateng, na direita, para Thiago, que encostou para a baliza semi-deserta.

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O intervalo estava perto, mas ainda houve um momento digno de destaque, que contribuiu para a noite mal dormida que se adivinha de Guardiola. Neuer, o tal líbero 2.0, chutou mal a bola e esta, que saiu rasteira, foi direita a Casemiro. O brasileiro, sem mais nem menos, bateu nela de primeira, com a canhota, mas saiu curta. Já agora, é importante mencionar o trabalho estóico e incansável do trinco, que pedalava e fazia coberturas como se não houvesse amanhã. E não havia, certamente, pois este era um dos jogos mais importantes das suas vidas numa noite que parecia (e merecia ser) eterna.

A segunda parte voltou a ter um FC Porto forte, com carisma e bola. Manuel Neuer voltou a ser chamado a justificar o estatuto aos 57′: Quaresma tocou para Danilo na direita, que cruzou e quase viu Boateng trair a própria equipa. Apesar de intenso, o jogo foi menos rápido e menos bem jogado nos primeiros 20 minutos do segundo tempo.

“Quando o Bayern serenar vai ser complicado…”, esta frase assombrou a mente de muito boa gente. Mas, lá está, os jogadores que defendem o escudo da Invicta não estavam para essas cantorias e chegaram ao 3-1. O passe longo, que se enfiou entre Boateng e Dante, foi de Alex Sandro. Jackson, que se esperava que estaria de rastos por esta altura (65′), dominou, tirou Neuer do caminho e encostou tranquilamente com o pé esquerdo, 3-1. O conto de fadas ganhava outra forma, agora mais importante, pois não era um mero “ímpeto inicial”, como se costuma dizer.

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Até ao fim haveria muitas substituições de parte a parte. O ritmo e intensidade baixaram, acalmaram, quase permitindo aos adeptos do FCP desfrutar do sonho que estavam a viver. É irresistível recordar um adepto do Bayern, num direto da TVI durante a tarde, que previa dois-zero para a sua equipa. “Conhece algum jogador do Porto?”, perguntou-lhe o repórter. “Ahhhm… Ahhhm (durou 15 segundos)… Acho que há um brasileiro bom, não é?”. Este senhor terá aprendido alguns nomes esta noite.

Ponto final no Dragão: grande exibição, muito coração, maturidade e um sonho que ainda vive lá bem alto — FCP continua a ser a única equipa sem derrotas na competição. A segunda mão será uma delicia de ver, pois a exigência, compromisso e responsabilidade dos homens de Guardiola terão de irromper no relvado da Arena de Munique como um qualquer vulcão irritado. Más notícias: Alex Sandro e Danilo estarão ausentes devido ao cartão amarelo que viram.