No Verão Quente de 1975, quando a “reacção” começou a mostrar os dentes caninos à revolução, a Assembleia Constituinte era um mau sítio para um comunista se mostrar: o PCP era muitas vezes atacado pelo PS, pelo PPD, pelo CDS e pela UDP. Mas por piores que as coisas estivessem no Palácio de São Bento estavam sempre melhor lá dentro do que fora. Estavam claramente melhor do que em Vale de Cambra, onde foi lançada uma granada contra o Centro de Trabalho do PCP. Estavam decididamente melhor do que em Fafe, onde foi colocada uma bomba numa casa de um militante comunista. Estavam indesmentivelmente melhor do que em Campanhã, onde foi apedrejada uma sede do partido. Estavam incomensuravelmente melhor do que em Barcelos, onde um militante do PCP foi agredido. Estavam infinitamente melhor do que em Peniche, onde foram lançados cocktails molotov contra um Centro de Trabalho. E bem melhor do que em Aveiro, em Espinho, em Esmoriz, em Famalicão e em todos os sítios onde o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal) lançava panfletos a anunciar uma “cruzada branca para varrer a Frente Vermelha”.

Dentro do parlamento, pelo menos, a “Frente Vermelha” podia resistir. Encurralado no exterior da Assembleia, o PCP tentava encontrar culpados no interior. A 22 de Julho, tentou dar um tiro no porta-aviões. O líder parlamentar comunista, Octávio Pato, anunciou que iria falar da “acção directa de um Sr. Deputado” em “actos de banditismo fascista”. Na véspera, uma multidão tinha atacado a Câmara Municipal de Alcobaça e a sede do PCP na cidade. Depois dos tiros e do fogo, o dia acabara com vários feridos.

Octávio Pato tinha uma revelação a fazer: “Entre os reaccionários que cercaram ou participaram no cerco e no assalto encontrava-se um Sr. Deputado a esta Assembleia Constituinte. Estas são as informações que temos. Na nossa opinião, é absolutamente incompatível haver aqui nesta Assembleia alguém que participa aqui e ao mesmo tempo participa em actos de absoluto terrorismo fascista. Por isso, no caso de se provarem as acusações que me são transmitidas, nós pensamos que deve ser expulso desta Assembleia o deputado do PPD José Gonçalves Sapinho”.

Com estas quatro frases, os comunistas tentavam atingir quatro objectivos. Primeiro: provar, para lá de qualquer dúvida, que as violências dirigidas contra o PCP eram organizadas e não acções espontâneas do “bom povo”. Segundo: implicar nesses actos o PPD, o segundo partido mais votado nas eleições. Terceiro: colocar um alto dirigente social-democrata no centro da “reacção”. Quarto: provocar um escândalo e uma vergonha com a expulsão de um deputado “fascista” da Constituinte.

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O facto de tudo isto ir falhar de forma espectacular era uma prova de amadorismo que só se explicava pela fragilidade em que naquele momento estava o PCP. O debate que se seguiu tornou-se histórico pelo seu simbolismo: era a prova de que a actividade anticomunista que se espalhava pelo país estava a levar o PCP a cometer erros fatais.

As coisas começaram a correr mal poucos minutos depois de Octávio Pato falar, quando o seu alvo decidiu levantar-se em vez de se esconder: “O deputado em causa, José Gonçalves Sapinho, sou eu mesmo.” E ele mesmo começou a defender-se de imediato: “No sábado passado, depois de presidir a uma reunião no Externato da Benedita, que dirijo há cinco anos, desloquei-me para o Sabugal, de onde regressei na segunda-feira, às 2 horas da manhã. Tudo isso eu posso testemunhar, e demonstrar que [se trata de uma] calúnia lançada nesta Assembleia contra um deputado”. Queria isto dizer que na altura dos tumultos o deputado estava a 250 quilómetros de Alcobaça, facto que o impedia de ter participado neles a não ser que possuísse poderes de teletransporte.

Antes de terminar, o social-democrata virou a mesa: “Se for comprovado tudo quanto afirmo e não comprovado o que diz o Sr. Deputado Octávio Pato, este Sr. Deputado não pode permanecer, por falta de idoneidade, nesta Assembleia”. Quem corria agora o risco de ser expulso era o líder parlamentar do PCP.

constituintes, josé gonçalves sapinho,

O deputado do PPD Gonçalves Sapinho provou que estava inocente e contra-atacou

 

A vingança

Afirmando-se “contrariada”, uma comissão ad hoc liderada por António Arnaut, do PS, investigou o caso. Durante as suas diligências, recebeu uma carta de Octávio Pato. Entre as linhas, quase se ouvia o ranger de dentes do deputado comunista. No texto, afirmava que não tivera “qualquer intuito de insultar ou difamar” Gonçalves Sapinho. E concluía, com triste resignação: “Entretanto, e dado o desmentido feito pelo Sr. Deputado, procedemos a uma colheita de informações complementares, sucedendo que diversas pessoas, que assistiram aos cercos e assalto, informam não ter visto, entre eles, o referido Sr. Deputado. A ser isso certo, não teremos dúvidas em afirmar, digo, lamentar a ocorrência e os eventuais prejuízos morais causados ao Sr. José Gonçalves Sapinho, solicitando da Mesa da Assembleia Constituinte que dê o assunto por encerrado.”

O deputado do PPD não o deixaria escapar tão facilmente. Exigiu que o inquérito prosseguisse e, no final, a comissão considerou que a carta era “uma reparação moral à honra e dignidade do deputado Gonçalves Sapinho” e defendeu “que se declarasse não provada a acusação”.

Agora que estava decretada a sua pureza política, o social-democrata sentiu-se livre para avançar um pouco mais. Num discurso indignado, argumentou que o verdadeiro culpado dos ataques às sedes e aos militantes do PCP era, na realidade, o PCP: “Foi o próprio Partido Comunista que criou as condições para alimentar o anti-PCP. Foi o próprio Partido Comunista que lançou o ódio nas populações para agora dele colher os frutos amargos. Ao Partido Comunista cabe a responsabilidade de ter semeado ventos que originaram a tempestade.”

No seu arsenal retórico, ainda lhe restava uma frase de efeito. Entre “risos” e “aplausos”, Gonçalves Sapinho disse que “ao Partido Comunista não lhe sobra legitimidade para se queixar” e disparou, sentindo-se finalmente vingado: “As suas queixas fazem-me lembrar a história daquele imbecil que mata a mãe para depois ter possibilidade de se queixar de que é órfão.”

 

Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Invasão Spinolista”, de Eduardo Dâmaso
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Diário de Lisboa” de 22 de Julho de 1975
“Povo Livre” de 23 de Julho de 1975
“Visão História” de Julho de 2010