Durante os longos meses em que durou a Assembleia Constituinte, era possível encontrar o jovem Marcelo Rebelo de Sousa a discutir com deputados de outros partidos num de dois sítios. Se fosse de dia, no Palácio de São Bento. Se fosse de noite, no Frou Frou, localizado na zona do Campo Grande. Os mais conservadores diziam tratar-se de um “café-concerto”; os mais desempoeirados chamavam-lhe cabaret.

Os deputados da Constituinte iam lá pela ceia. Sentados à mesa, Marcelo Rebelo de Sousa e vários socialistas discutiam a revolução, a contra-revolução e o pós-revolução. No livro onde publicou as suas memórias deste período, uma fotografia mostra-o ao lado de Carlos Candal, Maria Fernanda Seita Paulo, António Esteves e Emídio Serrano, todos do PS.

Não era estranho ver o social-democrata Marcelo a jantar e a falar alegremente rodeado por membros de outro partido. Desde o começo, ele destacou-se por estar aberto àquilo a que chamava a “camaradagem” com adversários. Logo que começaram os trabalhos da Constituinte, recebeu um convite do Povo Livre, o jornal oficial do PPD, para “confiar a um bloco de notas” as suas “principais impressões”. Aceitou, com uma condição: a “de se tratar de notas escritas ao correr da ‘Bic’, e sem preocupações demasiadas de elaboração estilística…” Nasceu assim o “Bloco de Notas Parlamentar” de Marcelo Rebelo de Sousa.

A parte substancial de um dos textos desse bloco de notas foi dedicada, precisamente, à eleição dos “deputados conhecidos pela sua camaradagem”. O cronista-deputado reconhecia tratar-se de um exercício “difícil e melindroso”. Mas isso não o deteve: “A título pessoal, arrisco – só que apenas em relação a membros de outros grupos partidários”. A lista incluía Sottomayor Cardia, Aquilino Ribeiro Machado, Mário Pina Correia e António Arnaut, do PS; António Almeida, do CDS (que “conseguia ser simpático até nas suas votações sui generis”); Carlos Brito e Alda Nogueira, do PCP (que eram os “mais faladores” do seu partido); Luís Catarino, do MDP/CDE; e Diamantino Ferreira, eleito pelo círculo de Macau.

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Num post-scriptum, Marcelo não resistiu a quebrar a promessa de deixar de fora os deputados do PPD e acrescentou: “Não queria deixar de lembrar a jovialidade e a joie de vivre dos deputados aveirenses. Com Ângelo Correia e Gomes de Almeida na liderança…”

Também num post-scriptum, mas a outro texto, escrito alguns dias antes, Marcelo tinha notado um pormenor interessante: “O V da vitória foi o sinal escolhido pela maior parte dos deputados do PPD para afirmarem a sua presença no momento da chamada. A ideia surgiu espontânea mas é capaz de ‘pegar’”. Realmente, o mínimo que se pode dizer é que “pegou”: o “V da vitória” tornar-se-ia para sempre na forma de saudação oficial do partido.

Apenas 26 anos

Em 1975, Marcelo Rebelo de Sousa tinha apenas 26 anos. Só o conhecido “salto geracional” que foi dado com a revolução explica que, com essa idade, ele fosse um dos dirigentes mais importantes do PPD e um dos deputados mais influentes da Constituinte. Além de membro do Conselho de Fiscalização do partido e de presidente da Comissão Política Distrital de Lisboa, Marcelo era ainda administrador-delegado do Expresso (onde escrevia uma popularíssima coluna de opinião) e director da Federação Portuguesa de Futebol. A juntar a isso, sendo filho de Baltazar Rebelo de Sousa, ex-governador geral de Moçambique e antigo ministro de Marcello Caetano, conhecera o interior do salazarismo e do marcellismo.

Depois de somar todas estas experiências, Marcelo concluiu que tinha “uma história para contar”. Assim, alguns meses depois de entrar no Palácio de São Bento, já em 1976, começou a preparar a sua autobiografia. Ou melhor: começou a preparar o primeiro volume da sua autobiografia. Se já é espantoso imaginar alguém ainda longe dos 30 anos a escrever as suas memórias, torna-se surrealista perceber que elas teriam mais do que um volume. O livro, que chegou a ser noticiado em vários sítios, só não foi publicado porque Marcelo descobriu que a sua editora, Snu Abecassis, andava a mostrar a evolução do manuscrito ao líder do PPD, Francisco Sá Carneiro, com quem já tinha uma relação.

Duelo com Vital Moreira

Foi pena, porque nesse livro Marcelo poderia ter contado, por exemplo, mais detalhes sobre o duelo titânico que travou com Vital Moreira no Parlamento a 18 de Julho de 1975. Os dois não eram amigos, mas já se tinham cruzado, uma vez que Vital em tempos oferecera a Marcelo um dos seus livros sobre Direito Constitucional. Naquele dia, o social-democrata fez a sua primeira intervenção no plenário, sobre a compatibilização entre a Constituição e a revolução – e o comunista estava preparado para lhe pregar várias rasteiras.

Depois de Marcelo Rebelo de Sousa fazer um discurso aparentemente de “esquerda”, Vital Moreira não resistiu: “Ouvi com o maior agrado a surpreendente exposição do deputado do PPD. Julgaríamos estar a ouvir linguagem inusitada vinda de tais bancadas. E como foram utilizadas expressões e linguagem aparentemente semelhantes àquelas que surgem de outras bancadas – mas que talvez no contexto o seu significado seja diverso –, eu gostaria de perguntar ao Sr. Deputado qual o sentido de algumas expressões que utilizou. E, nomeadamente, aquela que talvez tenha utilizado mais: ‘revolução’”. Perguntou-lhe ainda o que queria dizer com “projecto revolucionário”, com “projecto de Constituição revolucionária” e com “vontade do povo”.

Se Vital queria luta (e claramente queria), Marcelo estava pronto. Começou por chamar a atenção para o facto de “não ter utilizado em nenhuma parte” da sua intervenção as expressões “projecto revolucionário” e “projecto de Constituição revolucionária”. Depois, como se não tivesse percebido a provocação, deu uma explicação técnica para tudo o resto.

Vital não se deixou ir abaixo e carregou no acelerador com nova pergunta: “Outra explicação que eu queria, talvez o Sr. Deputado ma possa prestar, é a seguinte: se o Sr. Deputado considera ou não que uma das medidas revolucionárias é julgar os ex-agentes da PIDE e de outras organizações repressivas”.

Claramente, Marcelo não estava à espera disto. Tentou escapar: “Bom, de facto trata-se de um pedido de esclarecimento que ultrapassa em muito a exposição que fiz. Não sei…” Vital foi sarcasticamente simpático: “O Sr. Deputado responderá se quiser. Eu posso pôr a pergunta noutra altura.” Encostado assim à parede, Marcelo teve de dizer alguma coisa: “Com certeza que são medidas revolucionárias”.

A resposta não satisfez o deputado comunista e os dois entraram num diálogo pugilístico:

“Vital Moreira: Sr. Deputado, acho que está a interpretar mal o meu pedido de esclarecimento. O que eu pedi foi que me mostrasse no projecto do PPD onde é que se admite a incriminação dos pides que não possam ser acusados de outra coisa senão de terem sido agentes da PIDE.

Marcelo Rebelo de Sousa: Ora bem. Esse pode ser o problema da retroactividade ou não da lei penal incriminatória.

Vital Moreira: Não, Sr. Deputado, é o problema de julgar os pides, Sr. Deputado. É esse!
O que eu pergunto é isto: se o projecto do PPD fosse aprovado, era ou não possível condenar todos os pides por terem sido agentes da PIDE? É essa pergunta que eu faço concretamente.

Marcelo Rebelo de Sousa: Depende da interpretação da legislação da lei penal em vigor.

Vital Moreira: Não, Sr. Deputado. Depende do projecto de Constituição que aqui está.
O Sr. Deputado não está a responder à minha pergunta, que é muito concreta.

Marcelo Rebelo de Sousa: Na medida em que o projecto, naturalmente, permite a incriminação dos ex-agentes da PIDE/DGS…

Vital Moreira: Não permite, Sr. Deputado!

Marcelo Rebelo de Sousa: Ah, isso permite!

Vital Moreira: Prove-me, se faz favor.

Marcelo Rebelo de Sousa: Permite, na medida em que entre dentro da incriminação de lei penal.

Vital Moreira: Oh, Sr. Deputado! Que eu saiba, no projecto do PPD…

Marcelo Rebelo de Sousa: Aliás…

Vital Moreira: …nada existe que admita a incriminação dos ex-agentes da PIDE.

Marcelo Rebelo de Sousa: Aliás, há um outro elemento adicional, que é o seguinte: é o de que, admitindo nós, expressamente, logo nos princípios fundamentais, a recepção automática de direito internacional, os crimes contra a Humanidade estão necessariamente acolhidos por recepção do direito internacional comum.

Vital Moreira: Bom, Sr. Deputado, com essa magnífica pirueta (risos), eu, portanto, esperarei que o Sr. Deputado aprove aquele artigo em que se diz expressamente que os agentes da PIDE serão objecto de julgamento. Muito obrigado.”

Será difícil encontrar um melhor exemplo do que este da teoria jurídica transformada em acção política. Quem disse que escrever uma Constituição não era uma actividade animada?

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda
“Lx 70”, de Joana Stichini Vilela
“Marcelo Rebelo de Sousa”, de Vítor Matos
“Povo Livre” de 4, 12, 18 e 25 de Junho de 1975