Jerónimo de Sousa em 2015: é líder do PCP há mais de dez anos, esteve no Parlamento num total de quase 30 e foi duas vezes candidato a Presidente da República. Jerónimo de Sousa em 1975: tem 28 anos, é afinador de máquinas na MEC – Fábrica de Aparelhagem Industrial, tem o 4.º ano do curso industrial, é benfiquista, adora os Beatles, aderira ao PCP há apenas um ano e não faz ideia de como funciona uma Assembleia Constituinte. Quando o convidaram para integrar as listas do Partido Comunista, perguntou: “Deputado? Como é que isso se faz?”

Aprendeu rápido. A 10 de Outubro de 1975, Jerónimo de Sousa já sabia muito bem como se fazia a Assembleia espumar de raiva. Ao defender as reivindicações dos seus colegas metalúrgicos, avisou: “Connosco ninguém brinca!… Nós, operários, nunca vamos para uma greve com um sorriso nos lábios!…”

Estas palavras provocaram “agitação” no hemiciclo, mas o deputado comunista estava preparado para ela:

“Jerónimo de Sousa: Porque é que…

Uma voz: Provocador!

Jerónimo de Sousa: Cala-te, amarelo!

(Burburinho na sala.)

Presidente: Pede-se a atenção.

Jerónimo de Sousa: Amarelo!

Uma voz: Está-nos a insultar.”

Era um grave insulto, de facto. Os “amarelos” eram os fura-greves, os trabalhadores que estavam mais interessados em defender os interesses do patronato do que os da classe operária. No meio de um processo revolucionário, havia poucas coisas piores do que ser “amarelo”. Por isso, naturalmente, os supostos “amarelos” reagiram. Houve acusações: “Provocador!”. E recomendações: “Vai trabalhar!” Vendo a inquietação do Presidente da Assembleia, Jerónimo de Sousa tentou acalmá-lo, mas só fez pior:

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“Jerónimo de Sousa: Deixe lá, Sr. Presidente, a burguesia manifesta-se.

Uma voz: Burguês és tu!”

Segundo as actas, “os apupos e vozes dispersas aumentaram de intensidade”, juntamente com o “burburinho”. O deputado comunista não se intimidou:

“Jerónimo de Sousa: Que raio de Ministério do Trabalho é este?

(Gera-se o pandemónio, que se prolonga durante algum tempo.)

Presidente: Insisto em pedir atenção.

Jerónimo de Sousa: Então nós não temos dificuldades? (…)

Outra voz: Tens mesmo cara de ser trabalhador.

(Os serviços, em face do pandemónio gerado, são impotentes para registar as palavras que se proferem.)

Presidente: Insisto em pedir a atenção. Teremos de suspender a sessão, se continuamos assim.”

A sessão não foi suspensa, apesar de tudo continuar “assim”:

Jerónimo de Sousa: Tal como no fascismo, nós mostraremos a força da classe operária e não tenhamos ilusões, Srs. Deputados…

Vozes: Pois não! (…)

Outra voz: Tu e o Américo Duarte sois a vergonha da nossa classe!

O Orador: … A tal base social de apoio…

(A agitação, as manifestações, os apupos e a troca de palavras impossíveis de registar prosseguiram em ritmo crescente.)

Presidente: Peço particularmente aos meus camaradas do Partido Socialista o favor de ouvirem o orador com compostura e dignidade. (…)

Jerónimo de Sousa: A tal base social de apoio ao Governo ficará reduzida aos sectores da burguesia, porque quando os trabalhadores descobrem que são enganados esquecem a sua ideologia para fazer frente ao seu inimigo comum: o capitalismo!…

Vozes: Apoiado.

Jerónimo de Sousa: Com sincera alegria o digo!… Na terça-feira, a meu lado, vi trabalhadores socialistas, comunistas e sem partido a lutarem pelos mesmos objectivos.

Uma voz: Aldrabão!”

Quando, no meio de um debate na Constituinte, um deputado grita “Aldrabão!” para outro, começa a temer-se a passagem para formas superiores de luta. Mas, de maneira milagrosa, a violência manteve-se apenas retórica. Mais à frente, com a “balbúrdia” a “aumentar” e ao continuar a ouvir “apupos”, Jerónimo de Sousa usou outra vez a sua expressão preferida: “Cala-te, amarelo”. Mas ninguém se calou. O deputado comunista terminou a sua intervenção no meio de “expressões de exaltação”, de “confusão”, de “manifestações” e de uma “agitação tumultuosa”.

“Fachos” e “colaboracionistas”

Não é preciso, porém, erigir já um altar a Jerónimo de Sousa: o operário comunista não era sempre a santa vítima dos apartes de outros deputados – muitas vezes, era ele quem interrompia os discursos dos adversários. E não era para lhes pedir gentilmente que mudassem de opiniões. Quando Mota Pinto fez uma das suas intervenções como líder parlamentar do PPD, Jerónimo gritou: “Ladrão da classe operária!”

Num dos seus discursos, Diogo Freitas do Amaral, líder do CDS, foi interrompido para ser chamado de “reaccionário” e, noutro, de “colaboracionista do Marcelo!” (não era uma referência a Marcelo Rebelo de Sousa, que dispensava colaborações, mas a Marcelo Caetano). E quando Pedro Roseta, do PPD, ousou interromper uma intervenção de um deputado comunista, ouviu Jerónimo: “Cala-te, ó facho!”

Nada disto deixou traumas irreparáveis. Há poucas semanas, a Assembleia da República e o Expresso juntaram os antigos deputados numa sessão de comemoração dos 40 anos da Constituinte e Jerónimo de Sousa não teve que manter uma distância de segurança dos seus antigos adversários. Pelo contrário: foi cumprimentado “de forma afectuosa”. Os “ladrões”, os “aldrabões” e os “amarelos” tinham ficado definitivamente enterrados nas páginas dos Diários da Assembleia Constituinte.

 

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Diário de Notícias” de 2 de Junho de 2005 e de 16 de Abril de 2007
“Expresso” de 25 de Abril de 2015
“Público” de 28 de Novembro de 2004 e de 4 de Setembro de 2005