Se o jornalismo literário tivesse uma carta com mandamentos, o primeiro seria: “Não inventarás.” Claro está que não faltariam repórteres para depois irem arder no inferno.

Truman Capote foi um dos primeiros a deixar-se levar e a cruzar a fronteira que separa o jornalismo da ficção, com a obra-prima A Sangue Frio. Recentemente, John d’Agata escreveu um livro inteiro (The Lifespan of a Fact) sobre o seu embate com o fact-checker Jim Fingal por causa de uma simples reportagem sobre Las Vegas.

Não foram os únicos. O jornalista e escritor Artur Domoslawski esteve em Matosinhos para participar no festival Literatura em Viagem e, apesar de não ter nenhum dos seus seis livros publicados em Portugal, foi um dos autores mais requisitados do evento. O motivo chama-se Kapuściński non-fiction, polémica biografia onde o autor desvendou novas informações sobre Ryszard Kapuściński, um dos repórteres internacionais mais prestigiados do século XX.

Como correspondente internacional, poucos superam Kapuściński no número de guerras, revoluções e golpes de Estado a que assistiu, e que narrou de forma única. Domoslawski conheceu-o bem, foi seu protegido quando se iniciou no jornalismo. Após a sua morte, em 2007, decidiu escrever uma autobiografia pouco habitual: em vez de contar apenas aquilo que os polacos queriam ler sobre o herói nacional, relatou factos menos abonatórios, como os serviços prestados aos serviços secretos comunistas. Mas, principalmente, colocou em causa a veracidade de algumas reportagens, onde a fronteira entre realidade e ficção foi ultrapassada.

“Considero a obra dele literatura. Por favor, não me falem em jornalismo, porque não é”, disse em entrevista ao Observador.

As vendas de Kapuściński non-fiction dispararam, assim como os elogios, as críticas e as más interpretações. Valeu-lhe o Grand Press Journalist of the Year Award, em 2010, ano em que publicou o livro na Polónia, e processos em tribunal com os quais ainda tem de lidar. O livro, que é também um retrato da Polónia antes do colapso da União Soviética, está nas livrarias de vários países europeus como o Reino Unido, Espanha e Alemanha, mas não há previsão de chegada a Portugal. Ainda que no LeV se tenham iniciado contactos importantes nesse sentido.

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A entrevista ao Observador foi toda feita em português. Domoslawski vive na Polónia mas viaja muito para o Brasil, embora o domínio da língua pudesse fazer crer que viveu décadas no gigante da América do Sul.

Durante a conversa “Os Conflitos Interiores” [que abriu o LeV, no sábado] admitiu que, caso tivesse lido O Jornalista e o Assassino, de Janet Malcolm, antes de escrever a polémica biografia de Ryszard Kapuściński, talvez nunca a tivesse feito. Arrependeu-se?

Foi uma declaração um pouco exagerada, mas é verdade que, como li o livro há pouco tempo, pergunto-me isso, no sentido de se teria coragem para o escrever. No final da edição polaca do livro, na parte dos agradecimentos, eu conto um pouco como foi calçar os sapatos do Kapuściński para ver o mundo e a vida através dos olhos dele. E como foi descalçar depois esses sapatos, para olhar para a vida dele de fora. Foi como uma transição da parte da empatia até ao escritor algo frio que tem de construir uma imagem mais, digamos, objetiva. Estas reflexões assemelham-se bastante às de Janet Malcolm, ainda que ela vá muito mais além nos julgamentos éticos que faz. Ela também escreve perfis e biografias. Então, quando diz que o biógrafo ou jornalista estão a fazer uma traição ao objetivo do texto, também está a falar de si mesma. O objetivo dela não é levá-los a deixarem de escrever, mas sim despertar a consciência dos escritores e dos jornalistas para que saibam que o que estão a fazer é uma coisa moral e eticamente muito ambígua.

Por exemplo: você está a entrevistar-me e eu confio em si, contando-lhe a minha história e as intenções que tinha quando comecei a escrever o livro. Você pode simpatizar com o meu ponto de vista, ou não. Mas depois, quando for ler o que escreveu, posso sentir-me traído por não ter sido aquilo que eu quis transmitir. Acho que é bom termos consciência de que, na nossa profissão, existe uma componente de traição. Eu nunca pensei trair Kapuściński, mas talvez tenha traído um pouco por ser inerente à profissão. A Janet Malcolm diz que a profissão de biógrafo ou jornalista que traça perfis tem um potencial de crueldade ou inimizade. Esta transição do momento da empatia da entrevista e da construção da confiança para o momento da escrita é um pouco frio.

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Cătălin Dorian Florescu e Artur Domoslawski, na conversa do LeV moderada pelo jornalista Luís Ricardo Duarte. ©Booktailors

O biografado pode sentir que foi traído, mas não é uma traição ao trabalho, nem à profissão, certo?

Sim, claro. A Janet Malcolm escreveu aquele livro na sequência de um caso em que um assassino confiou a história dele a um jornalista. O jornalista não prometeu fazer a história como o assassino queria, mas este tinha confiança que o tinha convencido da sua versão dos acontecimentos, e pensava que era essa versão que o artigo ia apresentar. No começo eu penso que o jornalista ainda não sabia, mas ao longo do processo, encontrando-se muitas vezes com o então acusado e assistindo às sessões no tribunal, ele chegou à conclusão que o acusado era mesmo o assassino. O problema ético é que o jornalista não o avisou disso. Nem acho que o devia ter feito. Mas quando saiu o livro, ele sentiu-se traído.

Mas se queria ter a certeza que passava a sua versão da história, não deveria ter contratado um ghostwriter?

Do ponto de vista profissional, o jornalista fez o que devia fazer. O problema é que a nossa profissão é sempre um jogo de confiança com os outros. Eles esperam uma coisa mas recebem outra. Claro que se pode dizer: problema deles. Mas não só. De certa forma, jogamos um pouco com essa confiança, então eu acho que há aqui uma certa ambiguidade. Você tem o direito de escrever o que pensa, mas não é agradável ver o objeto do nosso artigo ou livro, aquele que confiou em nós, decepcionado. É uma coisa com a qual cada um de nós nesta profissão tem de aprender a viver.

Se voltasse a escrever a biografia de Kapuściński, faria alguma coisa diferente?

Não, não. Quando comecei a ler o livro da Janet Malcolm foi um pouco chocante do ponto de vista ético e moral. E comecei a pensar se o tivesse lido antes, se teria coragem de fazer esta traição [risos]. Se teria escrito como penso, ou se teria tido mais autocontrolo.

Teria sido bom esse autocontrolo?

Se isso significa esconder coisas desagradáveis, acho que não. Mas às vezes não é necessário impressionar os leitores com detalhes que podem ser cruéis para terceiros. Por exemplo, ao descrever os assuntos pessoais da família Kapuściński, eu não queria esconder informações, mas procurava uma linguagem que não os magoasse. É esse autocontrolo que eu acho que é bom. Mas, por exemplo, algumas pessoas pediram-me que omitisse o cruzamento de Kapuściński das fronteiras jornalísticas e a colaboração com os serviços de inteligência polaca. Isso nunca poderia fazer. Eu tratava de explicar porque é que ele fazia estas coisas e tinha o cuidado de não fazer julgamentos morais mas sim explicar o contexto e os motivos. Mas esconder? Isso não cabe na minha consciência de jornalista.

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Capa da edição polaca da biografia. ©Divulgação

Foi uma biografia autorizada, no sentido em que a família autorizou o acesso aos arquivos. Acha que a polémica causada pelo livro pode ter a ver com o facto de as pessoas não estarem à espera de descobertas negativas vindas de uma biografia autorizada?

Foi autorizada, mas eles nunca quiseram controlar a minha escrita. Quanto à polémica, há dois grandes fatores. O primeiro é que nós na Polónia gostamos muito de monumentos e heróis, seja um escritor, um político ou um artista. E muitas pessoas esperam que o herói não tenha sido só um grande escritor, mas grande em todos os aspetos da vida: um excelente pai, um bom marido, etc. Então, como não era assim, alguns disseram: “O Kapuściński afinal era terrível.” Outros disseram: “Domoslawski é um traidor porque não deveria contar estas coisas.” Acho que nem uma nem outra são corretas. Cada ser humano tem direito a ser imperfeito e ele foi um excelente escritor, era afetuoso e se gostava de alguém sabia expressar a sua amizade. Ao mesmo tempo eu sei, através de muitas conversas, inclusive com a mulher dele, que com a família ele não foi tão bom. Ficar decepcionado com isso é uma demonstração de ingenuidade e imaturidade. Quanto às revelações que fiz, não tenho muita vontade de contestar isso porque faz parte do meu trabalho! Como não revelar? O trabalho do jornalista é precisamente esse.

A viúva de Kapuściński na altura tentou impedir a publicação. Esse diferendo resolveu-se?

Não conseguiu impedir porque os tribunais de primeira e segunda instância rejeitaram o pedido, mas ainda tenho dois processos movidos por ela e pela filha. Acusam-me de difamação e querem que eu peça desculpas públicas na imprensa. Acho que estão prestes a terminar na primeira instância mas, na Polónia, a lei relativa a este tipo de assuntos não é muito clara. Acho que está dependente da opinião do juiz, por isso tanto posso ganhar como perder. Não consigo compreender este sentimento de vingança e não seria capaz de perseguir alguém durante cinco anos por um motivo absurdo. É ridículo. Acho que Kapuściński não sai mal no livro, pelo contrário, sai bem! Sai como um homem de carne e osso que tem mais luzes do que sombras.

Não acha que Kapuściński faria o mesmo se estivesse vivo?

Não acredito que o fizesse. Nós tivemos uma excelente relação de amizade e consigo imaginá-lo chateado com alguns aspectos. E penso que a biografia séria e totalmente honesta só pode ser escrita após a morte do biografado. Alguns biógrafos famosos dizem isso mesmo. Neste caso, não há a autocensura relacionada com o pensamento de que a pessoa vai ler. Escrever a biografia enquanto Kapuściński estava vivo não me passou pela cabeça e mesmo após a morte dele foi uma pessoa que me incentivou a fazê-lo, devido à proximidade que tivemos. Mas não, não creio que ele me fosse perseguir durante cinco anos na justiça [risos].

Para além da família, muitas das críticas vieram dos meios de comunicação social, não foi?

Sabe que, no jornalismo, a má notícia é notícia. Quando o livro saiu, recebeu excelentes elogios na Polónia. Na capa da edição inglesa tem uma recomendação do Zigmund Bauman, que é para mim o intelectual polaco vivo mais importante. Mas certas pessoas, algumas delas influentes, ficaram chateadas e o que passou para o estrangeiro foram as opiniões negativas. Foi interessante observar que, quando o livro saiu na Polónia, chegaram ecos ao Reino Unido e a Espanha que resultaram em títulos devastadores, não para o livro, mas para Kapuściński, chamando-o mentiroso, por exemplo.

In this picture taken in 2002, Polish author and journalist Ryszard Kapuscinski poses in his office in Warsaw. Kapuscinski, several times cited as a likely candidate for the Nobel literature prize, has died 23 January 2007 at the age of 74. AFP PHOTO/REPORTER/POLAND OUT (Photo credit should read STR/AFP/Getty Images)

Kapuściński fotografado em 2002, cinco anos antes de morrer. ©STR/AFP/Getty Images

Eu senti-me muito mal porque nunca tinha sido minha intenção magoar a memória dele. Estes idiotas que supostamente o defendiam acusaram-me de uma coisa que não é verdade. Mas você sabe como funcionam alguns media. Há um livro que está a causar escândalo e estão a dizer que Kapuściński era mentiroso? Em Inglaterra foram esses os títulos: “Nova biografia acusa Kapuściński de mentir e de espiar”. Felizmente nem todos fizeram isso. Na revista Letras Libres, que sai na Espanha e no México, o jornalista questionou-me sobre os rumores que diziam que o livro era contra Kapuściński porque ele achou que eu defendia-o em demasia [risos]. Na Inglaterra e no mundo anglo-saxónico em geral também foi diferente porque muitos jornalistas já não gostavam de Kapuściński, exatamente por ele cruzar fronteiras entre o jornalismo e a literatura. Para eles o meu livro não foi uma revelação, mas sim uma confirmação. Quando eu cheguei a Londres para a promoção do livro, participei numa mesa com John Ryle, um antropólogo e um crítico muito duro de Kapuściński, de quando ele publicou o livro Ébano, por causa de alguns erros, invenções e orientalismo. Ele não era racista, pelo contrário, mas era um homem de outra geração, numa época em que na Polónia ninguém sabia nada sobre África.

Não se desiludiu com o jornalismo?

Digamos que tive a oportunidade de sentir na pele o que eu sabia na teoria. E sempre que ia apresentar o livro tinha de explicar o que realmente era e o que não era. Quando um leitor não concorda comigo, eu aceito. O pior é quando alguém tem uma opinião muito forte sobre um livro que não leu. Isso foi um pouco doloroso. Mas uma pessoa como eu, que exerce esta profissão, não deve reclamar demasiado.

Não se sabia já que Kapuściński tinha colaborado com os serviços secretos polacos?

Já se sabia porque, cerca de seis meses depois de ele ter falecido, acho que a revista Newsweek de edição polaca publicou partes do arquivo onde havia informação sobre isso. No meu livro há algumas coisas novas sobre este aspecto, numa interpretação positiva. Ele teve contactos com os serviços secretos mas, em primeiro lugar, foi ocasional. Em segundo lugar, ele não magoou ninguém… Não há informação sobre isso. Em terceiro lugar, é preciso compreender o contexto da época, os anos 70. Kapuściński não considerava a Polónia comunista um país hostil porque era comunista de convicção! Ele não considerava errado ajudar um amigo que era chefe dos espiões na Embaixada do México, por exemplo, com quem bebia vodka à noite. Que há de errado num comunista convicto dizer ao chefe de espiões amigo dele: “Olha, eu acho que este tipo que finge ser um editor de uma revista americana no México é um espião.” É um grande pecado? Eu não acho.

Depende das consequências que daí advierem.

Mas que consequências podem ser? A Inteligência provavelmente já sabe que um editor americano no México pode ser um espião. E eles não se matavam entre eles. Às vezes as pessoas têm em mente as imagens dos filmes, mas nem todos os casos são assim. Além de que os casos importantes da Guerra Fria não se passavam no México. Se fosse um espião americano na Polónia ou na Rússia, ou vice-versa, aí seria outra coisa. Havia também a espionagem branca, que consistia em analistas irem para um país ler as fontes de informação, como a imprensa e alguns relatórios públicos, e retirar análises daí que podem ser úteis para o país de origem. O que ele fazia entrava mais neste campo. No livro eu escrevo que, hoje, para muitas pessoas com ideologia anticomunista, Kapuściński fez um pacto com o diabo, para poder viajar. E eu digo que não havia diabo nenhum porque ele foi parte deste sistema. A visão dele era completamente diferente naquela altura. Tendo tudo isto em conta, é difícil construir um julgamento moral e ético definitivo. Acho sim que ele cruzou, mais uma vez, uma fronteira que não deveria ter cruzado como jornalista, ao colaborar com a espionagem, independentemente de esta ser comunista ou não.

Depois de ter sido tão atacado por “criticar” Ryszard Kapuściński, não teme cair na armadilha de o defender em demasia agora?

É uma boa pergunta. Porque quando a biografia saiu e surgiram os primeiros ataques, que eu não esperava, acho que no início eu caí nessa armadilha. Tratava de defender tudo, ou quase tudo. Era uma coisa emocional. Acho que hoje sou capaz de pensar com mais calma nesse aspecto.