Vital Moreira não deveria estar ali. O único deputado eleito pelo PCP em Coimbra tinha sido Fernando Blanqui Teixeira – e foi ele quem tomou posse do mandato a 2 de Junho de 1975. Mas o histórico dirigente comunista não ficaria na Assembleia Constituinte por muito tempo. No dia 16 apresentaria a sua renúncia. Isso aconteceu por motivos de doença, mas, nas suas memórias, Jorge Miranda dá uma razão mais prática: “Depois da derrota [na discussão sobre o regimento], os comunistas devem ter-se apercebido de que precisavam de reforçar o seu grupo e ninguém melhor para isso do que Vital Moreira.”

Jorge Miranda podia conhecer bem as qualidades do seu novo colega – mas era dos únicos. Ao anunciar no hemiciclo a substituição, o presidente da Assembleia, Henrique de Barros, tratou o novato por “Dr. Vítor Moreira”. Dias depois, Norton de Matos, deputado pelo CDS, também não tinha ainda fixado o nome do recém-chegado, juntando-se assim ao estado de confusão do Presidente, que se mantinha:

“Norton de Matos: Parece-me que, se seguirmos à risca as expressões apresentadas pelo Sr. Deputado do Partido Comunista Português, salvo erro o Sr. Vilar Moreira, qualquer espécie de confusão deixa de aparecer. (…)

Vital Moreira: Sr. Presidente, dá-me licença? Era apenas para evitar confusões (…) – eu não me chamo Vilar Moreira.

(Risos.)

Presidente: Peço imensa desculpa, mas eu tenho muitos amigos chamados Vilar, que eu estimo e respeito muito…

(Risos.)

… Mas peço desculpa, porque, efectivamente, foi um lapso.

Vital Moreira: Mas não foi o Sr. Presidente…

Norton de Matos: Sr. Presidente: Dá-me licença? (…) Eu não sei que erro cometi. Acredite perfeitamente que não foi feito com qualquer intenção, e lastimo não conhecer ainda os nomes dos meus duzentos e cinquenta e quatro, salvo erro, colegas. Espero dentro de pouco tempo lá chegar, e evitar-se-ão estes erros absolutamente involuntários.”

De qualquer forma, em pouco tempo toda a gente fixaria o seu nome. Vital Moreira, que tinha apenas 31 anos e estava a cumprir o serviço militar nas Caldas da Rainha quando começaram os trabalhos da Constituinte, tornou-se, juntamente com Jorge Miranda, no jurista mais influente da Assembleia (no seu caso, ajudando a encostar a Constituição à esquerda).

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A qualidade das suas intervenções foi importante, claro. Mas a quantidade também. Muitas vezes, a loquacidade do deputado do PCP testou os limites da paciência do Presidente da Assembleia. Um dia, avisou-o: “Espero que seja a última vez que o Sr. Deputado Vital Moreira volta a falar sobre este assunto.” Noutra ocasião, perdeu a cabeça:

“Presidente: A Mesa neste momento acaba de não lhe conceder a palavra. (…).

Vital Moreira: O Sr. Presidente acaba de responder a argumentos que eu utilizei. Tenho direito, pelo menos, de responder, já que não é o debate.

Vozes: Fora! Fora!

(Apupos.)

Presidente: Sr. Deputado Vital Moreira, sabe perfeitamente…

Vital Moreira: Sr. Presidente e Srs. Deputados…

Vozes: Fora! Fora!

(Agitação na sala.)

Presidente: O Sr. Deputado Vital Moreira sabe perfeitamente que a consideração na ordem pessoal pelas pessoas não autoriza a modificar as fórmulas do Regimento. Portanto, desculpe, mas eu não lhe posso conceder a palavra nesta altura.

Vital Moreira: O que se passa é que há um problema. Há um problema…

Vozes: Rua! Fora!

(A agitação na Assembleia prossegue.)

Presidente: Não concedo a palavra ao Sr. Deputado. (…)

Vital Moreira: Eu devo protestar… para o facto de o Partido Comunista Português… não poder…

Presidente: Não vale a pena… (…) Sr. Deputado Vital Moreira, eu peço-lhe para não usar da palavra. Além de lha ter retirado, neste momento, segundo o Regimento, peço-lhe pessoalmente para não insistir no uso da palavra. Só está a contribuir, com a sua tentativa, para causar nesta Assembleia uma efervescência desnecessária.”

“Não seja pateta!”

O Presidente da Assembleia não era a única pessoa irritada com Vital Moreira. Muitas vezes, o professor universitário de Coimbra olhava para os outros deputados da mesma forma que um elefante olha para uma formiga: com um indisfarçável sentimento de superioridade. Durante uma discussão, lamentou-se: “Sr. Presidente, Srs. Deputados, um jurista como eu vê-se na situação de ter de provar mais uma vez a um jurista ou vários juristas que eles não têm razão.” E noutra: “Creio que só a ignorância do Sr. Deputado a respeito de conceitos judiciais pode justificar tal interpretação.” E noutra ainda: “Quanto à intervenção do Sr. Deputado Jorge Miranda, devo dizer que as únicas coisas correctas que ouvi foram aquelas que consistiam na repetição do que eu tinha dito.”

Ferreira Junior, do PPD, foi certeiro na descrição: “O Sr. Deputado Vital Moreira, a par das qualidades que todos lhe reconhecemos, ainda não foi capaz de se despir de toda a formação da Universidade coimbrã napoleónica, que realmente lhe pesa na sua maneira e comportamento (…). Na verdade, em muitas das suas intervenções é pena que ainda não tenha despido esse ar omnisciente, esse ar de quem tem a ciência e a verdade na mão, para quem a sua sebenta é a única que vale.”

Mas, se Vital Moreira tinha uma sebenta de Direito numa mão, na outra tinha uma luva de boxe. Envolveu-se em várias disputas na Assembleia. A 30 de Outubro, enquanto ouvia um discurso de Amândio de Azevedo, do PPD, atirou: “Não seja pateta!” Teve uma primeira resposta imediata, do deputado social-democrata Barbosa Gonçalves: “Ontem disseste que não eras mal-educado e afinal vai tudo por água abaixo…” E teve uma segunda resposta alguns dias depois, quando Amândio de Azevedo pediu outra vez para falar:

“Amândio de Azevedo: Sr. Presidente, creio que talvez seja o momento oportuno de eu usar da palavra para o efeito que considero indispensável para a defesa da minha dignidade de deputado. No Diário da Assembleia Constituinte, que acaba de ser distribuído (…), está registado que o Sr. Deputado Vital Moreira proferiu estas palavras: ‘Não seja pateta!’. Eu queria perguntar ao Sr. Deputado Vital Moreira se é exacto que ele proferiu estas palavras, se as palavras foram dirigidas a mim e, em caso afirmativo, que apresente as devidas explicações. (…)

Vital Moreira: Sr. Presidente, Srs. Deputados, a frase que eu efectivamente proferi foi: ‘Não seja pateta, Sr. Deputado’. O Sr. Deputado a que eu me referi era o Sr. Deputado Anes de Azevedo [o seu nome completo era Amândio Anes de Azevedo]. E, em terceiro lugar, não apresento quaisquer explicações, porque não cabem e não são devidas.

(Risos.)

Presidente: A Mesa não tem poderes para apagar a expressão. Lamenta que, efectivamente, ela tenha sido proferida.

Amândio de Azevedo: (…) Eu não vou responder na mesma moeda. Mas, entretanto, lamento que a Mesa não tenha palavras para verberar uma atitude destas e que deixe sem resposta uma atitude malcriada e reincidente na mesma afirmação caluniosa para um deputado que está nesta sala e que, naturalmente, se reserva o direito de agir como melhor entender, já que a Assembleia não age de forma nenhuma.

(Agitação na sala.)”

Como se vê, Vital Moreira estava pronto para a luta na lama que por vezes é indispensável ao combate político. Quando um dia o deputado do PPD Eduardo Vieira olhou para ele e disse “Pareces um palhaço”, respondeu: “Para palhaços temos cá muitos…” Realmente, isto não era coisa que se aprendesse na “Universidade coimbrã napoleónica”.

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda
Jornal “Campeão das Províncias” de 23 de Outubro de 2014