Esqueça o cinzento bairro europeu das instituições da União Europeia, esqueça a Grand Place, esqueça os chocolates e as cervejas belgas. Vamos antes dar um passeio pela cidade da “BDmania”.

Livrarias, museus, galerias, fundações, murais, festivais, bares e restaurantes temáticos, conferências, leilões, estátuas, estações de metro e comboio, editoras, exposições, lojas de “souvenirs” e até uma escola superior: o culto da banda desenhada (BD) está em todos os bairros de Bruxelas. Respira-se banda desenhada por todo o lado.

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A BD é uma arte nacional, que gera um volume de negócios considerável e que já deu à cultura popular mundial alguns dos seus heróis míticos: Tintim, Lucky Luke, Blake e Mortimer, Spirou, Fantásio e Marsupilami, ou os Estrumpfes. Mas não são só os clássicos que mandam, também nascem projectos de vanguarda e experimentalistas. A BD belga já não tem a pujança de outrora, mas Bruxelas mantém-se uma cidade de referência para esta arte que faz parte da identidade do país.

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Quando se deambula pelos chamados circuitos BD, marcados por 45 pinturas murais gigantescas e estátuas de personagens célebres, tem-se a sensação de estar dentro de uma história aos quadradinhos. Os murais, realizados em paredes de edifícios e que apresentam vinhetas de heróis de banda desenhada, contribuem para valorizar o património urbanístico e tornar a cidade mais alegre.

E se o número de livrarias numa cidade permite julgar o grau de importância da leitura para uma comunidade, então a quantidade de livrarias especializadas em BD (30), mais as secções descomunais em certas livrarias generalistas, denota uma verdadeira “bdmania” em Bruxelas, fábrica de autores e heróis.

“Todos os belgas apreciam a banda desenhada, incluindo a família real”, garante ao Observador Willem de Graeve, director de comunicação do Centro Belga de Banda Desenhada (CBBD). Este museu, que vários membros da família real belga já visitaram, é uma verdadeira instituição da capital e um dos mais concorridos.

Instalado num edifício da autoria de outro ícone da cultura belga, o arquitecto Victor Horta, foi o primeiro museu do mundo dedicado à BD. Fez 25 anos em Outubro e recebeu 216 mil visitantes no ano passado (cerca de 85% são turistas estrangeiros). Uma iniciativa feliz, junta assim, no mesmo edifício, duas formas artísticas emblemáticas de Bruxelas: a Arte Nova e a BD.

A culpa é de Hergé, mas não só

Porque é que um pequeno país como a Bélgica, rodeado de colossos da cultura mundial (França, Alemanha, Reino Unido), é considerado o berço da BD europeia? Porque surgiram aqui tantos autores que dominaram o mundo das tiras e vinhetas durante a segunda metade do século XX?

É certo que a idade de ouro já lá vai e que a BD belga, hoje, convive no mercado mundial com a forte concorrência dos “comics” norte-americanos, das “mangás” japonesas, e da criativa produção francesa. Mas o mercado editorial na Bélgica revela uma vitalidade impressionante e, segundo os últimos dados disponibilizados pela Associação de Editores Belgas, a BD manteve em 2013 a sua posição de líder com 53% do volume de negócios da edição de livros em francês (à frente das ciências humanas e livros escolares).

Se a Bélgica, e a sua capital, continua a ser o paraíso das histórias aos quadradinhos, numa relação com quase 100 anos, é muito por culpa de Georges Remi, aliás Hergé, o criador de Tintim. Aos 22 anos, Hergé foi escolhido para chefe de redacção do suplemento juvenil do jornal católico Le XX Siècle e publicou Tintim, pela primeira vez, a 10 de Janeiro de 1929. No ano seguinte, surgiu o primeiro livro: “Tintim no País dos Sovietes”.

É o início de uma colecção de aventuras inesquecíveis e de êxito mundial. O “pai” do repórter mais famoso do mundo torna-se uma fonte de inspiração e um modelo para várias gerações de jovens belgas, e não só. Até hoje foram vendidos cerca de 230 milhões de exemplares das Aventuras de Tintim, em mais de 80 línguas e dialetos.

Claro que não é só a Hergé que se deve a “bdmania” na Bélgica. Willem de Graeve aponta mais razões que explicam o sucesso da 9ª arte. “A Bélgica é um país pequeno e complicado, com várias línguas e as pessoas que aqui vivem percebem que comunicar com imagens é mais fácil e eficaz”, diz este especialista. Tal como no final do século XIX em Nova Iorque, onde a BD nasceu e era uma forma de facilitar a comunicação: a cidade acolhia inúmeras comunidades de imigrantes que nem sempre falavam inglês, mas rapidamente percebiam as tiras e as vinhetas publicadas nos jornais.

E, no país de Brueghel, Van Eyck e Magritte, é razoável a tentação de procurar raízes da BD nestes pintores de excepção. De Graeve sublinha que os “pintores belgas não são apenas decorativos, muitas vezes contam histórias”. Resultado: “Quando a BD atravessou o Atlântico, foi adoptada imediatamente pelos belgas por ser algo que se cola à nossa identidade nacional”, afirma o mesmo especialista, para quem a Bélgica soube transformar a banda desenhada numa forma de arte. Aliás, terá sido o belga Morris, “pai” de Lucky Luke, quem pela primeira vez definiu a BD como “a 9ª arte”.

Mas outros factores popularizaram as histórias aos quadradinhos: os heróis de banda desenhada belga são “pessoas”, personagens como qualquer um, realistas, próximas do cidadão e do seu quotidiano. Por vezes incarnam até o anti-herói, como no caso do preguiçoso e desastrado Gastão. Ao contrário do que acontece nas histórias norte-americanas, nas quais predominam os super-heróis que vencem sempre.

Ao Observador, o director do magazine belga Spirou, especializado em BD, Frédéric Niffle ensaia mais uma explicação: “Na Bélgica, há menos obstáculos em relação às artes populares do que em França. Há menos snobismo, não nos levamos muito a sério. O belga tem uma natureza mais modesta e não vê nenhum problema em lidar com as disciplinas ditas ‘menores’”.

Por último, mas não menos importante, outro factor que explica a força da banda desenhada belga, ainda hoje, prende-se com a existência, desde 1968, dos ateliers BD da Escola Superior das Artes Saint-Luc. Por esta que foi a primeira escola europeia de banda desenhada passaram dezenas de jovens talentos, alguns dos quais são autores consagrados — François Schuiten (As Cidades Obscuras) — ou verdadeiros casos de sucesso em termos de vendas, como Philippe Francq o criador da sério Largo Winch.

No entanto, muitos outros saídos de Saint-Luc optaram por trabalhar em ateliers ou projectos coletivos, ou por criar revistas e pequenas editoras com vocação para publicações mais experimentais, algures entre a arte do desenho e desenho artístico.

A força da imprensa e das editoras emblemáticas

Não se consegue entender a força da BD belga sem ter em conta o fenómeno da imprensa especializada, sobretudo os magazines Spirou e Tintim (hoje só o primeiro ainda resiste) como caça talentos. Esta tradição da BD na imprensa, quer nos suplementos dos jornais generalistas quer nas revistas do sector, permitiu a várias gerações descobrir todas as semanas as aventuras de uma série de heróis.

Entre as revistas Spirou (1938) e Tintim (1946) “havia uma grande rivalidade e era necessário encontrar muitos autores para alimentar todos os números”, afirma Willem de Graeve. Também o director da revista Spirou, Frédéric Niffle, sublinha a importância da imprensa na ascensão da BD. “Foi essencial nos anos 40, 50, 60, durante os quais não existia praticamente o conceito de álbum de BD para os autores que trabalhavam na imprensa. Sem a imprensa, a banda desenhada não se teria desenvolvido.”

“Hoje, os álbuns substituíram a imprensa como suporte em papel. Mas, com o excesso de produção de álbuns nos últimos anos (cerca de 5 mil títulos por ano), um jornal como Spirou torna-se uma importante montra para os autores e as suas séries”, afirma Frédéric Niffle lembrando a importância dos cerca de 480 mil leitores que ainda hoje acompanham cada número da revista.

Foram décadas marcadas pela concorrência das duas revistas, dos seus dois heróis, Spirou e Tintim, promovidos pelas respectivas editoras: a Dupuis e a Lombard. Ambas acolheram e lançaram várias gerações de autores belgas e franceses da 9ª arte. Por isso utiliza-se genericamente a referência a uma banda desenhada franco-belga.

Duas editoras, duas revistas e dois artistas – Hergé e Franquin, mestres das duas escolas belgas. Hergé, e a chamada “escola de Bruxelas” da “linha clara”, realista, rigorosa, com Tintim como supremo emblema. E Franquin e a designada “escola de Marcinelle”, marcada pelo traço rápido e vibrante, o exagero e o humor de Spirou, Fantásio, Gastão e outros. Existe a tendência para enfatizar a eterna rivalidade das duas escolas e sensibilidades, das duas revistas e respectivas editoras mas, hoje, será mais pertinente falar de complementaridade para explicar a vitalidade da BD belga naqueles tempos.

Convém igualmente sublinhar o papel decisivo de outras editoras belgas clássicas como a Casterman, ou mais as mais recentes e independentes como Champaka, La Cinquième Couche e Frémok.

Bruxelas, “atelier” e montra da BD

Esta tradição de capital da “bdmania” está omnipresente em Bruxelas. Desde logo do ponto de vista histórico: aqui nasceu Hergé e Franquin, mas também Edgar Pierre Jacobs (o inventor de Blake e Mortimer) e Peyo (Estrumpfes). Mais actuais: Philippe Franq e Jean Van Hamme (Largo Winch), Philippe Geluck (O Gato) e François Schuiten. Muitos outros autores nasceram, viveram, conheceram-se ou passaram por aqui.

Bruxelas é também a cidade de Tintim. Nos álbuns do famoso repórter surgem várias vinhetas que fazem alusão à capital belga, apesar de nenhuma aventura decorrer na cidade. E, como não podia deixar de ser, Bruxelas acabou por tornar-se cenário de aventuras ou fonte de inspiração para outros autores belgas, mas não só. Aparece em pano de fundo de álbuns famosos como “Robert Sax” (de Rodolph e Louis Alloing), “Broussaille” (Frank Pé), “Brüsel” (Schuiten), só para citar alguns.

A “bdmania” chegou mesmo à toponímia, já que as autoridades municipais decidiram “rebaptizar” algumas ruas de Bruxelas com nomes de heróis das tiras. Mas é ao nível das actividades e entretenimento ligados à banda desenhada, que a oferta impressiona. Para além das livrarias e das pinturas murais, na capital belga há nada mais do que quatro museus/centros de documentação, uma casa dedicada ao cartoon e à caricatura de imprensa, uma Fundação e, a 20 km, o Museu Hergé.

E, para uma submersão total, há ainda hotéis, restaurantes e bares temáticos, festivais, galerias, estações de metro/comboio decoradas com murais, leilões de desenhos e pranchas, sem esquecer a Festa da BD, que decorre no primeiro fim de semana de Setembro, uma ocasião para assistir a animações várias, exposições, um mercado e um desfile de bonecos insufláveis gigantes.

Inevitavelmente, também o cinema se interessou pela banda desenhada belga. Steven Spielberg realizou uma adaptação d’As Aventuras de Tintim, escolhendo Bruxelas para a estreia mundial do filme em Outubro de 2011. Outros bonecos célebres como os Estrumpfes ou o Marsupilami acabaram por ser levados ao grande écran.

Portugal, fonte de inspiração da BD belga

Curiosamente, são vários os exemplos que demonstram a atracção da banda desenhada belga (e francesa) pelos portugueses, a sua cultura e a sua história. Aparentemente improvável, Portugal constitui fonte de inspiração.

E não é só por causa da personagem de Oliveira da Figueira que aparece em vários álbuns do Tintim: um vendedor ambulante um pouco fanfarrão, que vende toda a espécie de bugigangas em qualquer parte do mundo, e que representa o português espertalhão.

Mais recentemente, em 1996, Jean-Philippe Stassen publica “Louis le Portugais”, uma história sobre um grupo de imigrantes de diversas nacionalidades que decorre nuns subúrbios tristes, sem perspectivas, num ambiente de miséria e pobreza. Outra referência, Jean Van Hamme, co-autor da série “Lady S”, foi seduzido pela capital portuguesa e (com Philippe Aymond) encena em Lisboa o capítulo “Salade Portugaise”, uma aventura com suspense e acção que envolve a CIA, terroristas e perseguições.

Num registo experimental e poético surge a obra de Éric Lambé “Ophélie et le Directeur des Ressources Humaines”, uma deambulação inspirada na personalidade de Fernando Pessoa, mas com Bruxelas como pano de fundo. Mais prosaica é a colaboração de Frédéric Jannin e Liberski com a família Niepoort, de produtores de vinho do Douro, para quem realizaram rótulos com tiras de banda desenhada.

São alguns exemplos. Sem esquecer a BD francesa que conseguiu êxitos consideráveis inspirados em Portugal ou nos portugueses. Assim, um dos grandes sucessos comerciais da editora Dupuis é o livro “Portugal”, do francês de origem portuguesa Cyril Pedrosa, que conseguiu vender 65 mil exemplares e alcançar um volume de negócios de 2 milhões de euros, segundo a editora. O livro conta a história introspectiva de um autor de banda desenhada pouco inspirado que decide passar uns dias em Portugal, país de origem da sua família. Este não é um caso único: em França, há muitos outros títulos invocando os portugueses (“Les fabuleuses aventures de Santa Sardinha”, “Lisbonne”, “Magellan”, entre outros).

Mas afinal que tem Portugal que atrai autores de BD belga (e francesa)? Há traços dos portugueses, da sua personalidade ou cultura, que se enquadrem particularmente bem nos quadradinhos? Para além das relações afectivas que cada autor possa ter com Portugal, há motivos que justificam o interesse. Por exemplo, Jean Van Hamme que já visitou muitas vezes Portugal e cuja família tem vários laços com o país, explica ao Observador: “Lisboa e as suas colinas abruptas são muito visuais e encaixam particularmente bem num cenário de banda desenhada”.

Já Willem de Graeve, do Centro Belga de Banda Desenhada, garante: “Portugal tem uma boa imagem na Bélgica. Há muitos belgas que vão a Portugal e há uma importante comunidade de portugueses na Bélgica. Não é de admirar que isso se reflicta na banda desenhada. E o contrário também é verdade. Muitas bandas desenhadas foram rapidamente traduzidas em português. Portugal teve uma tradição de magazines BD com autores portugueses, mas também de bandas desenhadas norte americanas e belgas traduzidas em português.”

Para o director de Spirou, Frédéric Niffle, “a banda desenhada sempre viajou muito porque é necessário ir longe para encontrar a aventura. Não creio que Portugal tenha sido mais abordado do que a América, a Itália ou a Inglaterra, por exemplo. Mas como se trata de um país europeu e próximo do berço da banda desenhada franco-belga, é normal que os autores pensem em ‘enviar’ para lá os seus heróis, sobretudo para variar os cenários”.

Clara que, ao invés, também a banda desenhada lusa se inspirou na herança belga. O caso de “Neve Carbónica” de Gonçalo Garcia lembrando as “Ideias Negras” de Franquin é emblemático. De resto, o Centro Belga de Banda Desenhada tem-se empenhado em reforçar as relações entre os dois países. Em 2011, promoveu nas suas instalações a exposição dos originais da obra “A Pior Banda do Mundo”, de José Carlos Fernandes. Em Outubro do ano passado foi a vez do CBBD se “deslocar” a Portugal para organizar uma exposição de BD comemorativa dos 25 anos da instituição. Entretanto, o Centro Belga e a Bedeteca da Amadora mantêm contactos com o objectivo de facilitar o acesso ao público dos respectivos espólios.

E como será o futuro da BD e da imprensa especializada? Para Frédéric Niffle, o principal desafio é mesmo o de existir durante mais uma década. “As novas gerações descarregam filmes, músicas e BD grátis. No futuro, como vamos poder pagar aos autores? É toda a cultura que enfrenta este grande desafio”.

Entretanto, a capital da banda desenhada pode continuar a manter viva a “bdmania” como forma de arte, importante actividade económica e social e fonte de receitas.