Título: O Visitante da Noite e Outros Contos
Autor: B. Traven (tradução de Manuela Gomes)
Editora: Antígona
Páginas: 240
Preço: 16,00€

 

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Com esta esmerada edição de O visitante da noite e outros contos, publica-se, salvo erro ou omissão, e a fazer fé no catálogo da Biblioteca Nacional, o terceiro livro de B. Traven editado em Portugal. A primeira edição de uma obra deste autor publicada entre nós faz este ano 80 anos: foi, em 1935, O barco dos mortos – Novela de um marinheiro americano , o primeiro, se não me engano, que assinou, em 1926, com o pseudónimo sob o qual o conhecemos. Em 1956 (?) e 1988 saíram duas edições diferentes de um mesmo romance: o notável O Tesouro da Sierra Madre, cuja primeira tradução foi editada pela Minerva (os livros de capa amarelada e cercadura verde, em que Somerset Maugham, Alan Paton, Blasco Ibañez ou Bernard Shaw, por exemplo, ombrearam com Ethel M. Dell, Maysie Greig ou Florence Barclay). Tinha por título, simplesmente, O tesouro. Tenho essa edição, sem data de impressão. Em 1988, a Teorema publicou uma nova tradução já com o título completo, tornado célebre pelo filme de John Huston (1947, três Óscares). Traven assinou uma dúzia de romances, incluindo os seis que são agrupados num ciclo conhecido por ‘livros da selva’. As suas obras têm quase sempre como cenário o mais pobre mundo rural mexicano e quase sempre como protagonistas os seus indígenas, tratados nestes contos com uma ternura destituída de sentimentalismo ou condescendência (não é sempre o caso noutros escritos deste autor) – e os gringos que por lá se aventuram.

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B. Traven é o nome literário de um dos escritores mais misteriosos da primeira metade do século vinte. Apesar de todas as investigações e de várias biografias publicadas ninguém se atreve a garantir grande coisa sobre o autor (ou autores) que se esconde (ou escondem) sob este nom de plume. Na Wikipedia, tem uma entrada excepcionalmente extensa e cuidada para uma figura que não é propriamente costume aparecer nos radares da atualidade. Supostamente alemão (natural de uma cidade alemã que depois foi polaca), possivelmente americano ou de ascendência mista norueguesa-americana, nascido em data indeterminada dos anos finais do século XIX (188?), morto (se foi ele quem morreu) em 1969 – quase tudo são suposições e testemunhos ou dados muitas vezes contraditórios.

Toda a gente que se tem dedicado a tentar desvendar o enigma desta existência, parece resignada a concordar pelo menos em que, fosse ele quem realmente fosse, foi também um escritor e agitador anarco-sindicalista na Alemanha do primeiro quartel do século, sob o nome de Ret Marut. Exagero talvez. O editor americano da reedição de um dos seus romances dos anos 30 do século XX, Uma ponte na selva (The bridge in the jungle, Ivan R. Dee, Inc., 1994), esse, não vacila: dá sem hesitação o ano e lugar de nascimento, 1890, Chicago. As cinzas de quem foi conhecido no século por B. Traven (B, ponto, não há nome próprio correspondente à inicial) foram espalhadas na região de Chiapas do país onde passou a maior parte da sua vida adulta e terá deixado uma viúva mexicana. Chiapas, foi o berço da Revolução Mexicana, amparo de Emiliano Zapata e teatro de uma recente insurreição indígena nos anos 90 do século passado, capitaneada pelo Subcomandante Marcos (sempre de fotogénico passa-montanhas negro), com o seu Ejército Zapatista de Liberación Nacional, cujas brasas ainda bruxuleiam naquela região recôndita do sul do México. É uma sepultura condizente com as simpatias desse impenitente revolucionário anarquista. Seja como for, ele – ou quem falou por ele – nunca ajudou a levantar mais do que uma ou outra ponta do véu: fez mais ou menos suas as palavras de um poeta português seu contemporâneo, a minha biografia,/ tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte./Entre uma e outra todos os dias são meus.

Neste volume agora lançado pela Antígona reúnem-se onze contos escolhidos pelo editor entre os publicados em duas anteriores colectâneas, editadas, uma, nos Estados Unidos (traduzindo uma coleção antes publicada na Alemanha antes da Segunda Guerra) e outra em França, e traduzidos das respectivas línguas e não dos supostos originais em alemão (há quem diga que alguns dos escritos do autor que se escondeu sob o nome de B. Traven não foram escritos originalmente em alemão mas em inglês). Dois dos contos são bastante mais extensos do que os restantes: “O visitante da noite” e “Macario”, que são também os que mais evocam o que veio a ser conhecido por ‘realismo mágico’ sul ou centro-americano, de que são em certo modo precursores ou parentes; mas não se assustem: estão mais próximos em teor e qualidade literária, pela concisão e pelo estilo, dos grandes mestres anglo-saxónicos do ‘conto fantástico’. Os outros estão mais próximos do estilo de grandes contistas americanos como O’Henry (com menos bonomia e mais sarcasmo) ou Ambrose Bierce (outro escritor de destino misterioso, cujo nome chegou a ser mencionado como alter ego de Traven, o precedeu no México e cultivou um humor igualmente sardónico; “Macario”, de resto, na sua construção e desenlace tem parecenças com o famoso “An Occurrence at Owl Creek Bridge” de Bierce).

“Uma história verdadeiramente sangrenta” e “A história de uma bomba”, dois dos mais curtos, e “A sentinela”, o mais curto de todos, são três obras-primas de humor negro. O padecimento de Santo António que encabeça esta colectânea é um caso curioso: num cúmulo de ironia, os factos ficcionais que narra podiam perfeitamente documentar a intervenção milagreira de que o protagonista descrê e o narrador faz pouco. Em qualquer caso, deve dizer-se que todos os contos aqui reunidos são, numa palavra, irresistíveis, coisa que não me atreveria a dizer dos romances do autor, pelo menos no que diz respeito a este leitor. No que conheço da obra romanesca de Traven – não sendo muito, et pour cause – o seu lirismo ‘bom selvagem’ e o seu lado de pregador da fé revolucionária tornam mais indigesto o seu inegável talento de contador de histórias. Para além da sua qualidade própria, estes contos são provavelmente a introdução ao autor que mais o favorece e, neste sentido, a Antígona fez bem em desafiar o anátema que os livros de contos carregam junto dos editores.

Na Antígona, B. Traven, o anarquista revolucionário, está em casa. Não é por acaso que a editora se apelida ‘Editores Refractários’ e declara a sua paixão ‘pelos textos subversivos’. É um caso raro e digno de nota no mundo editorial de uma confessa e persistente convicção doutrinária. Digo isto sem particular simpatia pela maior parte do seu ideário e com imparcialidade a dobrar: já fui em tempos modesto e circunstancial destinatário de uma carta aberta de escárnio e maldizer do editor Luís Oliveira. Aproveito para assinalar, já agora, que está no catálogo da Antígona o único título editado em Portugal do importante sociólogo e filósofo francês anti-marxista Jacques Ellul (Propagandas, uma análise estrutural, 2014), um autor que, como alguns outros, e ao contrário de muitos outros, do catálogo, se conta entre os que de facto ‘contribuem para a compreensão dos acontecimentos que mudam a sociedade e a nossa vida’, nas palavras da ‘carta de missão’ da editora.