“A vida é uma aventura desenhada por cada um de nós. Interceptada pelo destino e por uma série de acidentes afortunados e desafortunados.”

É assim que começa o documentário “Patti Smith: Dream of Life”, realizado por Steven Sebring em 2008. Reunindo um espólio de 12 anos de gravações inéditas, o filme conta a história de Patti Smith num registo intenso e intimista, desde a juventude atribulada até aos períodos de afirmação enquanto artista multifacetada. Com mais de uma dúzia de distinções no palmarés, obtidas em festivais de cinema de todo o mundo, é uma das melhores formas de conhecer a carreira da anti-diva que adoptou Nova Iorque como a sua terra.

A cantora e compositora nasceu Patricia Lee, em Chicago, a 30 de dezembro de 1946. Desde cedo apaixonada por poesia e dona de múltiplos talentos, viria a tornar-se um ícone da cena punk rock nova-iorquina a partir do lançamento do seu disco de estreia “Horses”, em 1975, e do romance com o artista e fotógrafo Robert Mapplethorpe.

Esta é a terceira visita oficial da artista norte-americana ao nosso país. Foi também o primeiro nome a ser revelado no alinhamento do NOS Primavera Sound 2015, com direito a dupla atuação no Parque da Cidade, no Porto. A primeira, na noite de abertura do festival, com um espetáculo acústico de poesia em que Patti Smith recita poemas acompanhada à guitarra. Vai ser no Palco Pitchfork. Um formato que alguns poderão recordar caso tenham assistido à estreia da cantora em Portugal, no Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa. Foi a 29 de Novembro de 2001, dia em que morreu George Harrison entretanto homenageado por Patti Smith, ao longo da noite, que juntou aos seus poemas alguns dos êxitos do ex-Beatle. Em 2007 voltou para um espectáculo único no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, para promover o álbum de versões “Twelve”.

Na sexta-feira, no Palco NOS, será a vez de celebrar os 40 anos do simbólico “Horses”, editado em 1975 com produção de John Cale, ex-violinista-baixista-vocalista dos Velvet Underground. A fotografia da capa do disco, feita por Mapplethorpe, contribuiu para transformar Patti Smith numa das figuras mais aclamadas da história da música contemporânea. A artista, agora com 68 anos, virá acompanhada pela banda que inclui dois dos músicos que participaram nas gravações originais: o guitarrista Lanny Kaye e o baterista Jay Dee Daugherty. A acompanhar a banda figuram ainda Jackson e Jesse Smith, os frutos do casamento de Patti e Fred “Sonic” Smith, guitarrista dos MC5 falecido em 1994.

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A madrinha do punk foi oficialmente convidada pelo Papa Francisco para actuar no Concerto de Natal do Vaticano em dezembro passado. A artista travou conhecimento com o sumo-pontífice em 2013, na Praça de S. Pedro, durante uma breve sessão de cumprimentos. No momento do anúncio da actuação de Smith em Roma, algumas organizações católicas manifestaram o seu repúdio perante a ideia. Recordavam a célebre entrada do tema “Gloria”: “Jesus died for somebody’s sins – but not mine” (em português “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus”). Uma afronta à educação que recebera em casa. Smith foi criada num ambiente austero e rígido, a mãe era uma fervorosa Testemunha de Jeová. A canção foi composta por Van Morrison e gravada pela sua banda, os Them, em 1964. Smith manteve o refrão e reescreveu toda a letra a partir do seu próprio poema “Oath”, escrito em 1970, cinco anos antes da edição de Horses.

Além de Patti Smith, no último Concerto de Natal do Vaticano também actuou a Irmã Cristina Scuccia, a freira que venceu a versão italiana do concurso The Voice e que se tornou famosa pela sua versão de “Like a Virgin” de Madonna. A presença do ícone punk no Vaticano, em pleno concerto de Natal, apenas encontra paralelo na iniciativa do Papa João Paulo II que em 2004 recebeu e assitiu a uma performance de break dancers, sobre o mármore do Salão Clementino, no Vaticano.

O disco mais recente é “Banga” cujo nome vem de um personagem do livro “The Master and Margarita” de Mikhail Bulgakov. A poesia e os escritores têm um papel determinante na vida de Smith que elege o poeta inglês William Blake como seu favorito. Muitas coisas mudaram desde o lançamento de “Horses” mas o processo criativo continua a basear-se no estudo e na contemplação, na consciência global e na perda de pessoas. Um dos seus últimos trabalhos é a colaboração com The Kronos Quartet no tema “Mercy Is” para a banda sonora de “Noah”, o filme do ano passado que retrata o episódio bíblico do dilúvio.

O livro lançado em 2010 “Just Kids” – considerado pela Rolling Stone uma das melhores biografias da história do rock – tornou-se um sucesso internacional. Em novembro de 2010, o livro foi distinguido com o National Book Award. A obra retrata a ligação amorosa de Smith com o artista Robert Mapplethorpe, ao mesmo tempo que descreve os animados encontros com Jimi Hendrix, Janis Joplin e Andy Warhol. A obra faz tributo a um período particularmente turbulento e emocionante que se viveu no circuito cultural de Nova Iorque, na transição dos anos 1960 para a década 70 do século passado.

A artista já anunciou que vai lançar um segundo livro, em registo autobiográfico, que Smith designa como “um roteiro da minha vida”. O livro de memórias vai chamar-se “M Train”, título porventura inspirado nos comboios do Metro de Nova Iorque, e percorre a vida da artista ao longo de 18 “estações”. A primeira paragem é no Cafe’Ino onde era cliente assídua. A capa do livro é uma foto de Patti Smith sentada no seu lugar preferido, tirada no último dia de funcionamento do café entretanto encerrado. O sucessor de “Just Kids” viaja com a cantora através de sonhos e realidade, reflexões sobre o ofício de escritor e memórias importantes da sua vida no Michigan com Fred “Sonic” Smith.

Em 2007, o nome de Patti Smith passou a figurar no Rock n’ Roll Hall of Fame, em Cleveland. Em 2005, a artista recebeu o título de “Commandeur de l’Ordre des Arts et des Lettres” condecoração do Ministério da Cultura de França. O grau equivale ao de Comendador e é o mais alto daquela ordem ministerial francesa. A mesma comenda já foi atribuída à rainha do fado Amália Rodrigues (1985) e ao escritor António Lobo Antunes (2008). Mais recentemente, em 2010, a fadista Mariza foi distinguida com o grau inicial de “Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres” equivalente a Cavaleiro.

Conhecida pela figura andrógina Patti Smith começou por ler os seus poemas inspirados em Rimbaud na primeira parte dos concertos dos New York Dolls e dos Television. O seu primeiro registo fonográfico foi gravado em 1974. Era um 45 rotações (a designação da época para single) com uma versão do clássico “Hey Joe”, de Jimmy Hendrix, um dos heróis de Smith.

Para a história fica também o clássico “Because the Night” composto em parceria com Bruce Springsteen. Na esteira do sucesso inicial de “Horses”, Springsteen enviou uma cassete com uma música para que Smith escrevesse um poema, ideia que ela inicialmente rejeitou. Mas uma noite, enquanto esperava por um telefonema do namorado, resolveu ouvir a cassete e em poucas horas tinha a canção pronta. Assim nasceu um dos temas mais importantes da carreira de Patti Smith, em parceria com o “The Boss”, na altura editado no álbum “Easter” em 1978.

Considerada uma das personalidades mais influentes da música contemporânea, Patti Smith passará grande parte deste ano com a digressão que visita o Porto nos dias 4 e 5 de junho, no Parque da Cidade. Oito anos depois a expectativa é grande para rever a artista que nunca quis crescer, admitindo em entrevistas que sempre foi uma criança “peter pan”. Seja no espectáculo acústico ou no tributo a “Horses”, com a banda completa, estas serão noites de muita poesia, cavalos e rock n’roll.

pattismith.net / NOS Primavera Sound