1. Qual a razão para manter, numa revisão que assume a tarefa de simplificar o texto constitucional e diminuir o seu pendor ideológico, o preâmbulo da Constituição e o seu polémico “caminho para uma sociedade socialista”?

A manutenção do preâmbulo da Constituição é explicada por dois motivos. Em primeiro lugar, o projeto apresentado é uma revisão constitucional e não uma nova constituição. A revisão constitucional pressupõe um compromisso não só com o texto jurídico existente mas também com as raízes históricas do momento constituinte. Independentemente dos juízos de valor que possamos fazer da transição portuguesa para a democracia, a história é indelével, tendo o zeitgeist ficado lavrado no preâmbulo da Constituição. Em segundo lugar, e mais importante, a articulação de um argumento ideológico em torno do preâmbulo da Constituição não faz sentido, na medida em que este não tem qualquer efeito jurídico. Nenhum órgão de soberania, nem nenhum cidadão, pode invocar o preâmbulo na articulação de um argumento jurídico. JF

2. Este projeto é apenas uma “cura de emagrecimento”, como afirmou Miguel Nogueira de Brito numa das conferências constituintes? Por que não se escreveu um novo texto de raiz? 

A proposta é, também, uma cura de emagrecimento. Isto, na medida em que elimina muitos artigos que já não estão em vigor ou que puramente não são aplicados. Fazendo-se uma revisão do texto, faz sentido despojá-lo de várias disposições desprovidas de efectividade. Há também, no entanto, muitas soluções novas. TFF

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3. Como se justifica a eliminação da Constituição de direitos fundamentais como o direito à imagem e ao bom nome, à reserva de intimidade da vida privada ou à segurança no emprego? 

O direito à segurança no emprego não é eliminado. Em lugar de constar de um artigo autónomo, passa a estar incluído no âmbito do direito ao trabalho. Por outro lado, não se eliminam da Constituição os direitos à imagem e ao bom nome, nem à reserva da intimidade da vida privada. Desaparece o respectivo enunciado normativo, mas o direito-quadro de acordo com o qual “a todos são reconhecidos os direitos civis e liberdades inerentes à sua dignidade enquanto pessoa” recebe-os, bem como à generalidade dos direitos de personalidade. TFF

4. Porque é que nesta proposta se reduziram os direitos sociais, como o direito à greve ou a protecção da família? Como é que reduzir os direitos sociais pode ser uma opção positiva? 

O direito à greve mantém-se inalterado, o mesmo acontecendo com os direitos ligados à constituição da família, ao contrário do que tem sido dito e escrito. O que se suprimiu foram duas normas programáticas especiais de igualdade (actuais artigos 67.º e 68.º), que já decorrem do próprio princípio da igualdade (que se manteria no texto constitucional). Entendeu-se que a sua concretização deveria caber ao legislador democrático. No que à redução dos direitos sociais diz respeito, a lógica foi também a de que, tirando as opções estruturantes (como a existência de segurança social pública, escola pública gratuita e serviço nacional de saúde geral e universal), e o facto de todos os cidadãos (e estrangeiros que se encontrem em Portugal) serem seus titulares, a concreta forma e o quantum da sua atribuição deve ser competência do legislador democrático. TFF

5. A proposta sugere a diminuição do número de deputados para 200. Porquê um número par? O número de deputados não deveria ser ímpar, para impedir soluções como a do famoso “queijo limiano”?

A proposta de revisão constitucional deve ser lida de forma global, tendo sempre em atenção que determinadas alterações apenas fazem sentido quando enquadradas no espírito do projecto. A objecção à manutenção do número par de deputados, com o perigo óbvio da repetição de situações “limiano”, apenas faz sentido assumindo que o governo não goza de uma maioria absoluta na Assembleia da República. A proposta altera o processo de formação de governo, passando a exigir um voto de confiança explícito por uma maioria absoluta de deputados em funções. Deste modo, a possibilidade de governos minoritários ficarem reféns da satisfação de interesses geograficamente confinados, através da extracção de pork barrel por um deputado, é muito diminuta. JF

6. Na nova proposta, o Presidente da República passa a nomear sete juízes para o Tribunal Constitucional, que depois têm de ser confirmados em Assembleia da República, exigindo a votação favorável de ⅔ dos deputados. Este modelo não iria favorecer indesejáveis bloqueios partidários e institucionais? 

Não. O sistema politico português é caracterizado por uma legitimidade política dual, na medida em que tanto o Presidente da República (PR) como a Assembleia da República (AR) são eleitos directamente pelo povo e, numa relação de delegação inversa, também responsabilizados directamente. Esta alteração pretende tirar proveito da legitimidade política e eleitoral do PR, envolvendo-o no processo de nomeação dos juízes do Tribunal Constitucional (TC). Este modelo iria alargar a legitimidade dos juízes do TC, na medida em que a sua nomeação teria de satisfazer não só os critérios de preferência do PR, mas também da AR, obrigando a um alinhamento institucional e da estrutura de preferências. Em última análise, o que é apontado como bloqueio partidário e institucional pode ser percebido como um modo de colocar “ambição contra ambição”, garantindo que nenhum órgão se torna um primus inter pares do sistema político. JF

7. A proposta elimina a fiscalização preventiva. Isso não é uma diminuição dos poderes do Presidente da República e a eliminação de um instrumento que tem dado provas de eficácia ao longo dos anos? 

Se o instituto da fiscalização preventiva tem, ou não, provas dadas ao longo dos anos é uma premissa que fica por demonstrar. Em todo o caso, a sua eliminação tem vários objectivos. Em primeiro lugar, trata-se do tipo de fiscalização mais politizado de todos os processos – o que foi comprovado por todos os estudos empíricos que se dedicaram à sua análise e que pode eventualmente causar danos reputacionais ao Tribunal. Isto é potenciado, naturalmente, porque exige a intervenção do Tribunal durante o procedimento legislativo, no auge do debate político, e comummente utilizada como arma de arremesso pelo Presidente da República contra a maioria parlamentar e o Governo. Em segundo lugar, porque os próprios juízes sentem pressões acrescidas por parte dos vários actores políticos que não existem (ou existem em muito menor medida) nos outros tipos de processos, como foi testemunhado pela Conselheira Maria dos Prazeres Beleza na III Conferência Constituinte do Observador. Entende-se que a função jurisdicional deve ser exercida em ambiente de maior tranquilidade do que debaixo dos holofotes e de acordo com a imediaticidade da comunicação social. Em terceiro lugar, porque a entrada de um qualquer processo de fiscalização preventiva paralisa todo o Tribunal – e atrasa durante os 25 dias de prazo, designadamente, os processos de fiscalização concreta (que já duram vários anos) que decidem litígios dos particulares. O próprio prazo de decisão é curto demais para gerar consensos dentro do Tribunal e para contribuir para a qualidade da decisão. Em quarto lugar, a forma como está consagrada na Constituição em vigor incorpora, ela própria, um entorse ao princípio da constitucionalidade, ao permitir-se que uma pronúncia do Tribunal no sentido da inconstitucionalidade de um diploma seja ultrapassada pelo voto dos deputados. Num Estado de direito, fazer prevalecer o princípio da maioria sobre o princípio da constitucionalidade, na sequência de uma decisão de um tribunal, é no mínimo anómalo. Em quinto lugar, a fiscalização preventiva tem por objecto projectos de normas, isolados da sua aplicação prática, num exercício puramente hipotético e académico sem ligação necessária à realidade. Trata‑se, de resto, da modalidade de fiscalização da constitucionalidade menos usada (excluindo a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão), correspondendo a menos de 1,5% das decisões do Tribunal Constitucional. Por fim, a fiscalização preventiva é relativamente infrequente em Constituições ocidentais, tendo-se verificado uma tendência para o seu progressivo desaparecimento em regimes próximos do nosso. TFF

8. Exigir a aprovação do programa do Governo por maioria absoluta dos deputados não irá dificultar a governabilidade do país?

Não. Esta alteração visa dar incentivos aos actores políticos para a existência de coligações. Os custos de transacção associados aos governos minoritários são demasiado elevados, particularmente num momento de crise económica. Repare-se que esta alteração não pretende reinventar a roda: este tipo de arranjo institucional existe em inúmeros países europeus, como, por exemplo, a Alemanha ou a Bélgica. JF

9. A aposta em listas cidadãs não irá conduzir à proliferação de grupos de interesse, dinamitando a ideia do deputado enquanto representante da nação? 

Sim. As listas de cidadãos criam um conjunto de problemas na agregação de preferências, na volatilidade eleitoral, na fragmentação partidária no Parlamento e, em última análise, na governabilidade. É imprescindível a manutenção dos partidos enquanto unidades de representação por excelência. No entanto, é importante perceber a necessidade de reformar os partidos políticos e o sistema eleitoral. JF

10. Esta proposta de revisão constitucional elimina a possibilidade de o Tribunal Constitucional continuar a invocar o princípio de protecção da confiança e suprime o princípio da constitucionalidade? 

Ao contrário do que tem sido escrito e dito, os princípios constitucionais não deixam de ser parâmetro da validade das normas infraconstitucionais, nem parâmetro de controlo da constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional na proposta de revisão constitucional. Na verdade, a locução “normas” refere-se, de acordo com a ciência jurídica dos últimos 50 anos, tanto a regras (comandos mais concretos e determinados), quanto a princípios (comandos com um maior grau de indeterminação). Quanto ao princípio da protecção da confiança, o mesmo não está explicitado da Constituição actual, tendo antes sido deduzido do princípio do Estado de direito democrático. Ainda que haja bons argumentos para defender que se poderia manter este último ou até autonomizar o primeiro, em nenhum caso a eliminação do actual artigo 2.º levaria à sua não aplicação. Isto, porque se trata de um princípio constitutivo do património constitucional nacional e europeu que decorre necessariamente do actual artigo 18.º, n.º 3. Por fim, quanto ao princípio da constitucionalidade, o mesmo é, nas ordens constitucionais dos países de matriz continental, tautológico: decorre da natureza da Constituição enquanto norma fundamental. É, por isso, perfeitamente desnecessária a sua consagração constitucional. TFF

11. É verdade, como Paulo Rangel afirmou, que este novo projeto é “um texto feito claramente por lisboetas” com “horror à descentralização”?

De todo. Continuam a garantir-se as autonomias regional e local, que se mantêm como um dos limites explícitos do Estado unitário. A proposta até descentraliza ao aumentar (e simplificar) as competências das Regiões Autónomas. A eliminação dos Representantes da República é o único traço de sentido inverso, ao devolver ao Presidente da República as competências que, em seu nome, aqueles têm exercido. Quanto ao resto, as matérias relacionadas com as autonomias regional e local são, no essencial, desconstitucionalizadas, devolvendo ao legislador democrático a competência para a sua conformação, ainda que exigindo maiorias reforçadas para a sua aprovação. TFF

Veja a segunda parte das respostas às críticas aqui.