Às 15h35 de 25 de Novembro de 1975, o Presidente da Assembleia Constituinte, Henrique de Barros, “declarou aberta a sessão”. Os trabalhos começaram, como sempre, pela sonolenta leitura dos telegramas, cartas e comunicados enviados de todo o país para São Bento. Parecia um dia como todos os outros – mas, na verdade, era um dia que não tinha nada a ver com qualquer outro. Naquele preciso momento, o processo revolucionário estava a acabar.

Ou a começar. Às 15h35, os deputados ainda não sabiam como o processo se ia desenvolver. Várias chaimites dos Comandos haviam andado por Lisboa; um grupo de páraquedistas tinha ocupado diversas unidades das Forças Armadas; os militares tomaram conta da RTP, da Emissora Nacional, do Rádio Clube Português e das portagens da auto-estrada do Norte; e o Estado-Maior General das Forças Armadas anunciou oficialmente que estava em marcha uma sublevação.

Sintomaticamente, nenhum dos líderes militares das forças em confronto achou que valia a pena empatar uma chaimite, um soldado ou uma G-3 com a Assembleia Constituinte, fosse para a atacar ou para a defender. Bem no meio de um golpe e de um contra-golpe, os deputados puderam dirigir-se calmamente ao Palácio de São Bento e sentar-se no hemiciclo. Só ao fim de algum tempo é que alguém decidiu chamar a atenção para o facto de se estar a passar alguma coisa que talvez tivesse interesse para o futuro do país.

Quando isso aconteceu, foi com estrondo. José Luís Nunes, líder do grupo parlamentar do PS, pôs o pé no acelerador e nunca mais largou. Denunciando a “revolta subversiva de cariz militar”, avisou que “a jovem democracia portuguesa” se encontrava “perante a maior crise que jamais atravessou desde o 25 de Abril”. Estavam a suceder-se “as demissões de autoridade”, “as hesitações” e “as tibiezas”, tendo isso como resultado “a anarquia reinante”.

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O socialista, que sentia o país num “prenúncio” de “guerra civil”, desejou que as autoridades “jugulassem a revolta”. E propôs a aprovação de uma moção a “suspender desde já” o funcionamento da Constituinte, por “não haver condições” para o seu funcionamento. Mais: esse documento reafirmava “a confiança” na capacidade do Presidente da Assembleia para “assegurar a continuação dos trabalhos em qualquer momento e em qualquer lugar”. Traduzindo: perante a ameaça de instauração da “comuna de Lisboa”, isso deveria acontecer em São Bento, se possível; ou no Porto, se necessário.

Ao ouvir isto, o Presidente da Assembleia, Henrique de Barros, foi modesto, mas realista:

“Na medida das minhas possibilidades, aliás fracas, tudo farei para cumprir o dever que resultou da eleição para este cargo”.

A trabalhar “tranquilamente”

Perante este crescendo de dramatismo, Vital Moreira resolveu fazer de conta que não percebia o que se estava a passar no país. Antes mesmo da votação da moção do PS, o deputado do PCP pediu para falar. Segundo ele, não havia razões para suspender os trabalhos:

“Se pensarmos que esta Assembleia está aqui tranquilamente reunida, e se pensarmos que nada que se saiba, pelo menos que nós saibamos…

(Risos)

… põe em causa o funcionamento da Assembleia …

(Agitação no hemiciclo.)

… a primeira coisa é perguntar a que propósito vem esta moção.”

Para Vital Moreira, “esta moção” era apenas uma manobra para “pôr em causa o processo revolucionário”:

“Nós perguntamos muito simplesmente: o que é que neste momento impossibilita materialmente o trabalho da Assembleia Constituinte? O que é que neste momento impossibilita que, como aqui estamos há meia hora, continuemos até às 20 horas a trabalhar naquilo para que a Assembleia Constituinte foi eleita, para aquilo que a Assembleia Constituinte foi erigida, isto é, fazer a Constituição? Parece que nada.”

O deputado comunista não tinha dúvidas: a iniciativa do PS escondia a vontade de “fazer um autêntico golpe de Estado constitucional”.

Seguiu-se o que era previsível. O PPD, pela voz de Olívio França, apoiou a moção do PS, alegando estar-se perante um “momento terrível para a vida da democracia portuguesa”. O MDP/CDE, através de Levy Baptista, concordou com as objecções comunistas, brincando com o facto de “as originalidades do processo revolucionário português”, mais uma vez, “não conhecerem limites”. E a UDP discursou contra as “forças fascistas” e “reaccionárias” que tentavam “virar o povo do Norte contra o povo do Sul”. Américo Duarte terminou com uma ameaça:

“Quem não quer a guerra civil não a declara.”

Os protestos da extrema-esquerda não tiveram qualquer eficácia: a maioria dos deputados aprovou a suspensão imediata dos trabalhos. Às 16h55, o Presidente da Assembleia declarou:

“Em princípio, convocaremos a sessão para amanhã às 15 horas, a não ser que as circunstâncias tornem a impedir essa reunião”.

Havia razões para essa cautela. De facto, a Constituinte não se reuniu no dia seguinte. Nem no outro. As portas da Assembleia só voltaram a abrir a 28, mesmo assim apenas pelo tempo suficiente para o Presidente declarar “não se poder efectivar a sessão por falta de quórum”. Seria preciso esperar por 2 de Dezembro para a tranquilidade regressar. Nesse dia, às 15h42, Henrique de Barros “regozijou-se por conservarem os seus lugares e funções as autoridades legitimamente constituídas, entre as quais a Assembleia Constituinte”. A vida em São Bento já podia voltar ao normal.

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda
“O Pulsar da Revolução”, de Boaventura de Sousa Santos, Maria Manuela Cruzeiro e Maria Natércia Coimbra
“Os Dias Loucos do PREC”, de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira