Foi tudo muito rápido, parecia que alguém tinha carregado no botão do fast forward. Ana Cruz assistiu à sessão inaugural da Assembleia Constituinte, a 2 de Junho de 1975, sentada na galeria reservada ao público. No dia seguinte de manhã prestou provas para mostrar que seria suficientemente ágil e rigorosa a fazer a transcrição dos debates no plenário (por falta de alternativas, foi preciso usar uma velha gravação da Assembleia Nacional). E à tarde já estava a trabalhar no Palácio de São Bento. Com apenas 18 anos, sem qualquer formação política e sem nunca sequer ter ouvido antes falar em fascismo, estava bem no meio da revolução. E atenção: esta contratação supersónica foi a parte lenta da história.

A partir daquele dia, tudo acelerou ainda mais, com manifestações, tumultos, golpes e contra-golpes. Em primeiro lugar, deixou de haver horários. Os funcionários não podiam sair da Assembleia sem que a sessão desse dia estivesse integralmente transcrita. E aqui o uso da palavra “integralmente” não é força de expressão – ficava mesmo tudo registado: os discursos, os apartes, os desabafos, os protestos e até os insultos (que alguns deputados prefeririam seguramente esquecer).

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Ana Cruz continua a trabalhar na Assembleia da República, 40 anos depois

Este trabalho exaustivo era um desafio, até porque os meios técnicos da época não eram semelhantes aos usados pelos monges copistas – mas quase. E aqui, na descrição dos intermináveis passos que era preciso dar para completar a tarefa, entra a câmara lenta.

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Passo 1: Um dos responsáveis pelas transcrições sentava-se no meio da sala das sessões enquanto as intervenções eram gravadas.

Passo 2: Ao fim de quinze minutos, a bobine parava, o funcionário levantava-se e era substituído por um colega.

Passo 3: Seguia para uma sala onde havia vários gravadores à volta de uma mesa, escolhia um que estivesse vazio, punha uns auscultadores e, ao mesmo tempo que controlava o ritmo da reprodução áudio com um pedal, escrevia aquilo que ia ouvindo. Detalhe importante: escrevia à mão.

Passo 4: Entregava as folhas a outra funcionária, que dactilografava tudo.

Passo 5: As páginas eram devolvidas, para que pudessem ser introduzidas emendas.

Passo 6: As folhas voltavam às dactilógrafas, que as batiam novamente na máquina de escrever.

Passo 7: O resultado era revisto pelas chefias.

Tendo em conta tudo isto (santo Deus, havia sete passos!), não surpreende que os dias de trabalho se prolongassem muitas vezes pela madrugada.

Além de não haver horários, no começo também não havia dinheiro. Nos primeiros três meses de funcionamento da Constituinte, uma teimosia política fez com que os deputados não recebessem salário. Por arrasto, aconteceu o mesmo aos funcionários. Quando o dinheiro finalmente começou a chegar, durante algum tempo veio em notas. Ana Cruz lembra-se de um dia em que dois funcionários saíram de São Bento com um enorme saco dos Correios e, quando voltaram, traziam-no cheio – de dinheiro.

Depois de os salários passarem a ser processados através do Banco de Portugal, o dia de receber continuou a ser um acontecimento. Muitas vezes, os funcionários acabavam de trabalhar perto das 5h da madrugada, deixavam-se ficar pelo palácio até às 7h, iam tomar o pequeno-almoço ao Cacau da Ribeira e chegavam ao banco às horas a que as portas abriam.

Peripécias no palácio

Apesar destas dificuldades, havia pelo menos uma coisa de que Ana Cruz e os restantes trabalhadores da Assembleia não se podiam queixar: de monotonia. Em São Bento aconteciam as coisas mais inesperadas. Até ameaças de bomba. A 15 de Julho, por exemplo, Francisco Pinto Balsemão, que nesse dia estava a presidir à Constituinte, anunciou:

“Srs. Deputados, peço a vossa atenção. Informam os serviços de segurança desta Assembleia que receberam um telefonema anónimo, segundo o qual estaria colocado nesta sala um engenho explosivo. Entende a Mesa que não deve esta Assembleia ceder a formas de pressão neste sentido. No entanto, a Mesa não quer, por um lado, ser responsável por esta decisão, por outro lado, há um pedido concreto dos serviços de segurança desta Assembleia, no sentido de ser interrompida a sessão por meia hora, para que pessoal especializado tecnicamente possa fazer a necessária detecção. Peço a vossa atenção: ponho o problema à consideração da Assembleia. Vou pô-lo à votação.”

Américo Duarte, da UDP, não estava preocupado com explosivos – estava preocupado em não perder a sua vez de discursar:

“É que era eu a falar a seguir e eu estou na disposição, com bombas ou sem bombas,…

(Risos.)

… de fazer ouvir aqui a voz do povo. Por conseguinte, eu, com bombas ou sem bombas,…

(Risos.)

… quero que continue a minha inscrição e não haja atropelos.”

Aprovada a suspensão do plenário por meia hora, os seguranças espreitaram por debaixo das mesas e procuraram por trás das estátuas, mas não encontraram nada.

A 12 de Novembro de 1975, haveria mais do que ameaças. Com o cerco à Assembleia por parte de milhares de operários da construção civil, os deputados ficaram sequestrados. E os funcionários também. A dada altura, foi-lhes dada a possibilidade de saírem pelas traseiras do edifício, mas Ana Cruz recusou – iria ficar no seu posto. Graças a essa decisão, assistiu a dois momentos que passaram de dramáticos a cómicos e de cómicos a históricos.

A meio da noite, o primeiro-ministro, almirante Pinheiro de Azevedo, resolveu falar aos manifestantes da varanda do palácio para os tentar desmobilizar. Mas mal conseguia terminar as frases, sendo permanentemente interrompido com gritos de “Fascista! Fascista!”. Não estando a paciência entre as suas principais qualidades, berrou de volta: “Vão bardamerda mais o fascista!” A partir desse momento, já não havia nada a fazer. O cerco ia manter-se. Ana Cruz estava perto do primeiro-ministro e teve vontade de chorar: “Era quase um ambiente de guerra”.

Pouco tempo depois, começaram a circular rumores de que os deputados comunistas tinham recebido comida do exterior – logo no começo do sequestro, o bar da Assembleia já só tinha algumas fatias de fiambre e estava toda a gente esfomeada. Um grupo de parlamentares do PPD e do CDS decidiu esclarecer o assunto. Avançaram para a sala do PCP e abriram a porta. Ana Cruz foi com eles e, por isso, conseguiu ver os hoje célebres mantimentos. Os comunistas ofereceram-se para partilhar a comida, mas os restantes deputados recusaram.

Faltava um último momento de tensão. Quando finalmente os manifestantes permitiram a saída de São Bento, deputados e funcionários abandonaram o edifício através de um pequeno corredor que atravessava milhares de operários. À medida que avançavam, os trabalhadores esticavam os punhos, chegando a haver contacto físico com os sitiados. Atrás de Ana Cruz, o deputado socialista António Macedo, de 68 anos, gritava: “Não batam nessa senhora, que é funcionária!”

Mesmo depois de todos estes incidentes, a jovem de 18 anos decidiu continuar a trabalhar na Assembleia. Até hoje. Passaram 40 anos.

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Diário de Notícias” de 13 de Novembro de 1975
Entrevista a Ana Cruz