Não se pode dizer que o CDS tenha entrado na Assembleia Constituinte a transbordar de boa disposição. Diogo Freitas do Amaral lembraria nas suas memórias uma assustadora lista de contrariedades que naquele momento preocupava o partido: durante a campanha eleitoral de 1975, os centristas tinham tido vários comícios “boicotados, cercados, ou terminados a tiro”, à pedrada ou à força de cocktails Molotov; só sentiram liberdade para se “organizar e penetrar significativamente ao norte do Mondego”; o partido era, “de longe”, o “mais atacado, mais agredido, mais violentado e caluniado de todos quantos se apresentavam ao sufrágio”; e vários eleitores potenciais tinham “ficado com medo” de votar no CDS “porque muita gente não acreditava que o voto fosse mesmo secreto”.

Apesar disto, Freitas do Amaral fez um esforço para se sentar em São Bento com um sorriso. Tentou estabelecer contacto com os líderes dos grupos parlamentares mais próximos do CDS, mas chocou de frente com dois blocos de gelo. Como relata no seu livro, primeiro falou com o socialista Salgado Zenha:

– Boas tardes, Sr. Dr. Então, já viu o comunicado do CDS que apoia totalmente o PS no caso República?

– Já vi, já. Resta saber se o PS está interessado em receber qualquer apoio do CDS!

Depois, não se deixando abalar por esta contrariedade, avançou para Mota Pinto, do PPD:

– Boas tardes, Sr. Dr. Isto está a evoluir bastante mal, não lhe parece? Gostaria muito de conversar consigo mais à vontade. Podemos almoçar para a semana?

– Bom, sabe… Nas circunstâncias actuais, um almoço consigo, em público… Olhe, não me leve a mal, mas tenho de pôr o problema à Comissão Política do meu partido.

Lendo estes diálogos, o que aconteceu vários meses mais tarde, a 2 de Abril de 1976, não deveria ter surpreendido ninguém – mas surpreendeu. Depois de o terem tentado afastar à força, o CDS decidiu afastar-se de livre vontade. Na última sessão da Assembleia, quando toda a gente esperava uma comovida unanimidade à volta da nova Constituição, chegou o momento do espanto. Julgando estar a cumprir uma simples formalidade, o Presidente Henrique de Barros pediu:

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“Os Srs. Deputados que votam contra, fazem favor de se levantar.”

Todos os quinze deputados do CDS afastaram as cadeiras e puseram-se em pé. Houve apupos das galerias e uma voz vinda do hemiciclo gritou: “Reaccionários!” O Presidente da Assembleia ficou incomodado com esta espontaneidade:

“É um momento suficientemente emocionante para não justificar certas intervenções.”

Pouco depois, Vítor Sá Machado explicou ao hemiciclo o voto do CDS. Era uma posição que procurava o equilíbrio. Por um lado, justificando o chumbo, os centristas argumentavam que a nova Constituição era “paternalista”, “socialista” e “transpersonalista”. Por outro, lembrando que o CDS tinha “contribuído” para vários dos artigos aprovados, defendiam que ela “respondia a muitos dos nobres ideais que a inspiraram à partida” e asseguravam que, se o seu partido alguma vez ganhasse as eleições, seria “capaz de exercer o Governo com esta Constituição”.

Não era propriamente uma posição exótica. O próprio Francisco Sá Carneiro, líder do PPD, defendeu até às vésperas da aprovação que os social-democratas deveriam votar contra, ou pelo menos abster-se, mas depois recuou.

A dada altura do seu discurso, Sá Machado entusiasmou-se ao defender o CDS de possíveis acusações de apoio à contra-revolução e teve uma resposta de que seguramente não estava à espera:

“Não se iludam, portanto, aqueles que com má fé pretendam interpretar o voto do CDS. O nosso voto é na essência do 25 de Abril, no reconhecimento efectivo da sua grandeza histórica, um voto revolucionário!

(Risos.)”

O último desejo

De qualquer forma, a posição do CDS não foi suficiente para estragar o ambiente “festivo e de júbilo”. Quando os restantes deputados aprovaram formalmente o texto, houve “aplausos vibrantes e prolongados de pé”, foi cantado o hino nacional e ouviram-se vivas à Constituição, vivas a Portugal e até vivas isolados, sem destinatário definido.

No seu discurso final, o Presidente da Assembleia, Henrique de Barros, fez questão de divulgar a contabilidade da Constituinte: “Efectuaram-se 132 sessões plenárias, ocupando quase 500 horas, e 327 sessões das 13 comissões especiais que se constituíram, ocupando um total aproximado de mil horas”. O resultado foram 566 preceitos em 312 artigos.

Quando estava a acabar a sua intervenção, Henrique de Barros revelou um último desejo. O de que a Constituição, “por mais discutida, interpretada e contestada que viesse a ser”, demonstrasse “capacidade para suportar o embate, sempre rude, da experiência, da realidade vivida”. Passados 40 anos, pode dizer-se que isso, pelo menos, demonstrou.

Para alguns deputados, era o fim da sua passagem por São Bento. Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, tomara pouco antes a decisão de não se recandidatar, depois de assistir, horrorizado, à luta dentro do PPD por um lugar nas listas do partido. Como conta Vítor Matos na sua biografia de Marcelo, Vital Moreira ainda o tentou demover. O deputado comunista, que fora seu feroz adversário durante os meses anteriores, disse-lhe: “Eh pá!, mas agora é que isto vai ser interessante, é o verdadeiro começo da democracia…” Tinha razão – mas essa já seria outra história. A da Constituinte acaba aqui.

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Transição para a Democracia”, de Diogo Freitas do Amaral
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda
“Marcelo Rebelo de Sousa”, de Vítor Matos
“O Antigo Regime e a Revolução”, de Diogo Freitas do Amaral