A grande maioria dos médicos do Serviço Nacional de Saúde (80%) inquiridos pelos investigadores do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) afirma que as reformas vividas no setor nos últimos anos “já afetaram a qualidade dos cuidados prestados” e são mais ainda os que consideram que “o SNS não pode acomodar mais cortes”. O tipo de interferência no trabalho médico mais notado pelos clínicos é mesmo o da falta de material, assim como a pressão para gastarem menos com os doentes que, por sua vez, também interromperam tratamentos. Mas a situação não é exclusiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS), estendendo-se aos privados, embora em menor proporção.

“Cerca de 40% dos médicos hospitalares afirma já ter sido confrontado com a falta de medicamentos no tratamento adequado dos doentes e 30% estiveram envolvidos em cirurgias adiadas e 23% já deixaram de realizar técnicas invasivas por falta de material disponível.“, relatam os autores do estudo “O Sistema de Saúde Português no Tempo da Troika: a Experiência dos Médicos”, apresentado, esta segunda-feira, em Lisboa.

Se alargarmos a falta de medicamentos à falta de material, que é “a situação mais comum identificada por 38% do total de médicos”, aí percebe-se que “a situação é particularmente visível no SNS, chegando a 59,8% dos médicos que trabalham no setor não hospitalar e a 44,2% dos médicos hospitalares”, embora também no privado já se registem situações de falta de material como “luvas, agulhas, sondas ou pensos” e outros.

No que toca a pressões para gastar menos com os doentes, é no sector não hospitalar público que se encontram as “situações mais comuns de pressão para gastar menos com os doentes (24,4%) e de não prescrição de certos medicamentos (22%)” como antibióticos, antidiabéticos, anti hipertensores e reversores de bloqueio neuromuscular, lê-se no estudo realizado com base numa amostra de 3.183 médicos.

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De resto, as especialidades onde se sentem, segundo os médicos, mais pressão para gastar menos é na medicina geral e familiar, oncologia, medicina física e de reabilitação, urologia ou anestesiologia.

Muitos doentes estão a pedir medicamentos mais baratos e a abadonar terapêuticas

Porque a pressão não é só exercida sobre os estabelecimentos de saúde, mas também recai sobre os utentes ou doentes, neste estudo os investigadores do ISCTE quiseram também perceber de que forma as medidas levadas a cabo desde 2011 podem ou não ter influenciado o comportamento dos utentes portugueses.

Dos mais de 3.100 médicos que responderam ao inquérito, “70,3% dos médicos afirma que os doentes têm pedido com mais frequência a prescrição de medicamentos mais baratos mas, mais significativo, motivos económicos evocados pelos doentes têm levado ao abandono da terapêutica (segundo 53,3% dos médicos) e ao pedido de não prescrição de medicamentos (segundo 23,5% dos médicos) desde 2011.”

Estas percentagens são mais altas nos estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, mas também no privado os médicos se vão deparando com estes pedidos de ajuda. As especialidades onde se registam maior abandono, segundo os dados que foram permitidos recolher neste estudo, são na medicina física e de reabilitação, em psiquiatria e em pneumologia, em medicina geral e familiar e em oncologia.

Outra das conclusões deste estudo aponta, com base nas indicações dos médicos, para a quebra da atividade nos consultórios e clínicas privados “como um traço marcante desde 2011”. Já nos hospitais privados “encontra-se uma realidade dual ora de aumento ora de diminuição da atividade”. Os “indícios” apontam assim para que o mercado privado da saúde esteja a “atravessar uma situação de retração, principalmente dos prestadores de menor dimensão.”

Formação de internos piorou

Maioria dos internos e mais de metade dos médicos com anos de experiência consideram que a qualidade da formação caiu nestes últimos quatro anos. De acordo com o inquérito realizado, 78,7% dos internos “consideram que houve um decréscimo da qualidade de formação no internato médico” – período de formação que um recém-licenciado em medicina faz para alcançar uma especialização.

Menor acesso a atividades formativas, falta de tempo dos tutores/orientadores, seguido do excessivo número de internos nos serviços, a impossibilidade de estágios em locais mais diferenciados e a diminuição da qualidade dos cuidados assistenciais a que têm acesso os internos são as razões apontadas pelos clínicos para a quebra da qualidade percecionada. Por sua vez, mais de metade dos tutores inquiridos (51,1%) também partilham desta opinião e asseguram que houve um decréscimo da qualidade de formação no internato médico. Da parte destes, as principais explicações apontadas são: a falta de tempo para acompanhar a formação dos internos e o menor acesso a atividades formativas.

Jovens médicos mais motivados no SNS. Mais velhos, parecem estar melhor no privado

Os investigadores do ISCTE chegam à conclusão que os médicos mais novos tendem a estar mais motivados, realizados e menos esgotados no Serviço Nacional de Saúde do que no sector privado. O mesmo não se pode dizer dos clínicos mais velhos. “O acentuar das diferenças entre os sectores público e privado à medida que a antiguidade aumenta é particularmente visível na motivação e sensação de esgotamento dos profissionais.”

Embora a motivação seja maior no privado, no que toca aos médicos mais experientes, é neste setor que os clínicos em exclusividade “mais denunciam sentir dificuldades financeiras desde 2011 (21%)”.

“Ou seja, não obstante a maior realização e motivação destes profissionais, é notória uma pior avaliação das condições económicas no sector privado.”, lê-se no estudo.

E continuando no capítulo da motivação dos profissionais, tocando noutro tema bastante atual – o da emigração -, os investigadores concluem que “os médicos que sentem dificuldades económicas aumentam em 53,5% a possibilidade de emigrar enquanto os que se sentem realizados profissionalmente fazem diminuir a possibilidade de emigrar em 57,4%”. “É limitativo pensar na possibilidade de emigração dos médicos como reflexo do desemprego. Fica claro que aspetos relacionados com a remuneração mas, mais importante, com a realização profissional têm um forte poder explicativo na ponderação que os médicos fazem em sair do país.”, acrescentam.

Atenção à leitura dos resultados

Os autores deste estudo deixam contudo algumas ressalvas. Avisam, desde logo, que as conclusões obtidas não devem ser lidas como extensíveis à totalidade dos médicos a exercer em Portugal, dado que a informação se reporta apenas aos questionários devolvidos e validados, num total de 3.183 médicos. E dizem ainda “não ser possível perceber que motivos justificam as respostas dos médicos por não haver termos de comparação exatos face ao período anterior”. Ou seja, rematam, “continua a ser necessária cautela na associação direta entre as respostas obtidas e a intervenção da Troika por não se saber que reformas ou medidas políticas em concreto estão na base dos resultados apresentados”.

Os investigadores clarificam ainda que “não é rigoroso situar 2011 como um ponto de viragem na condução das políticas de saúde em Portugal, dado que medidas acordadas no Memorando de Entendimento (Portugal, 2011) coincidem com orientações políticas prévias.” O objetivo deste estudo realizado pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) a pedido da Ordem dos Médicos foi avaliar de que modo estes profissionais experienciaram as reformas introduzidas, quer em termos do funcionamento das organizações, públicas e privadas, e do exercício do seu trabalho, quer de alguns comportamentos dos utentes.