Dita a sabedoria popular que os vinhos brancos sejam servidos frescos e os tintos à temperatura ambiente. Mas é provável que o senso comum tenha deixado de lado a existência dos tintos de verão, isto é, néctares servidos a uma temperatura mais baixa do que o habitual — 16 a 18 graus, caso esteja esquecido/a — e que calham bem na estação mais quente do ano (não confundir com o conceito espanhol tintos de verano).

“Há certos vinhos tintos que podem ser bebidos a uma temperatura mais baixa. É o caso dos Pinot Noir, que podem ser bebidos entre os 14 e os 15 graus”, começa por explicar Rodolfo Tristão, presidente da Associação dos Escanções de Portugal. Tal como há determinados tintos que casam bem com pratos de peixe, também há os que ajudam a atenuar as elevadas temperaturas do verão ao chegarem mais frios ao copo. É este um jogo de contradições?

O certo é que o feito não é para todos: por norma, são tintos com uma estrutura menos encorpada e com taninos suaves, esclarece o escanção, além dos vinhos desenhados de propósito com esse objetivo (mais leves e elegantes). Os néctares do Dão, diz ainda, podem ser bebidos entre os 15 e os 16 graus: “Trata-se de uma região mais fresca. Normalmente são vinhos um pouco fechados no início e que, a uma temperatura mais baixa, vão-se revelando.”

Talvez seja por isso que o chef Diogo Noronha seja adepto de servir um monocasta Touriga Nacional do Dão a uma temperatura mais baixa. Não que tenha por hábito servir tintos mais frios no restaurante lisboeta Casa de Pasto mas, volta e meia, acontece. Seja numa noite quente de verão ou quando em causa está uma refeição com um vasto historial de vinhos brancos e/ou verdes e que, a dada altura, pede por um néctar com uma cor mais escura. Noronha admite, no entanto, que não o faz com todos os clientes e que isso apenas acontece com vinhos “mais jovens e frescos”, capazes de acompanhar carnes grelhadas e até pratos de peixe, como o bacalhau.

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Em causa não está apenas a ideia de refrescar os sentidos e de matar saudades de um bom vinho tinto (para quem tem por hábito arrumá-los no fundo da prateleira nos dias de maior calor). Isto porque, consoante o néctar, a temperatura reduzida permite sentir aromas e sabores. “O vinho não fica tão maçador”, esclarece Rodolfo Tristão, que assegura que há néctares que se portam muito bem entre 14 e 16 graus, tal como o Quinta de Pancas 2013.

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Ok, temperaturas baixas. Mas quão baixas?

A temperatura tem, então, um papel decisivo na experiência de consumir o vinho. Na equação entra a velha história da temperatura ambiente: “Nunca se pensou que a temperatura ambiente seja mais de 18 graus, mas os tempos mudaram. Antes [nas divisões] não havia carpetes, vidros duplos ou ar condicionado”, diz Tristão. O escanção lembra ainda que em jogo estão dois conceitos de temperatura — a temperatura a que o vinho está depositado na garrafa não é a mesma quando este é servido no copo.

Mas também é preciso falar de valores máximos e mínimos: quando um tinto está muito quente, a 22 ou a 24 graus, os aromas ficam muito intensos e o mesmo se pode dizer do álcool (o vinho pesado torna, consequentemente, a experiência da comida mais pesada); por outro lado, um tinto servido a menos de 14 ou 15 graus vai “camuflar os sabores e os aromas”.

O mesmo não pensa o enólogo Jorge Moreira, que trabalha para duas quintas durienses, além de ter um projeto próprio, Poeira. Moreira não tem problemas em atirar valores ainda mais baixos para a conversa. É o caso do vinho Quinta do Cidrô (monocasta Rufete, 2011), da Real Companhia Velha, que dá para ser bebido como se de um branco se tratasse, a 12 graus. A métrica não é, porém, referente apenas aos dias de grande calor, mas a todas as estações do ano, garante.

Já o Carvalhas Tinta Francisca, também da Real Companhia Velha, não foi desenvolvido com o propósito de ser servido mais frio, mas acontece que se dá bem aos 14 graus (bem como aos 16 ou 17). “No verão, mostra-se muito bem a 14 graus, até porque a [casta] Tinta Francisca tem um perfil mais do Dão do que do Douro. É uma casta mais aromática e menos encorpada, com taninos mais suaves”.

Jorge Moreira recua ainda no tempo para explicar que a ideia de esfriar os vinhos não é propriamente recente: “Sempre se fez isto no passado, quando havia um consumo menos preocupado com os vinhos tintos. Ia-se para os piqueniques e o pessoal metia os garrafões de vinho no rio para o beber mais fresco”. No entanto, e à semelhança de Rodolfo Tristão, Moreira esclarece que não é boa ideia servir vinhos com muita madeira ou com muitos taninos a temperaturas baixas.

“Há um perfil de vinhos que estamos a trabalhar na Real Companhia Velha: vinhos com caráter, personalidade e bastante intensidade. Um perfil que, mesmo quando o vinho é servido frio, continua a ter caráter. Há castas no Douro, como a Tinta Francisca, o Rufete ou o Pinot Noir que têm muita intensidade, que sobressaem mesmo quando os vinhos são servidos mais frios e bebidos a 13 ou a 14 graus”, esclarece Jorge Moreira.

E sim, o conceito de frescura tem duplo significado

Mesmo quando em debate estão tintos mais frios, o escanção evita colar o adjetivo “fresco” aos néctares, com receio que o cliente não compreenda o conceito em si, associando-o a temperaturas demasiado baixas. E dá um exemplo: “As pessoas têm o hábito de pedir vinho branco gelado. Gelado é a três ou quatro graus. Se pensarmos numa cerveja ou num sumo a essa temperatura, os dois não vão saber a nada.”

Já Jorge Moreira, o enólogo, defende que é tudo uma questão de língua. “Posso dizer que o vinho está fresco porque este é servido a uma temperatura mais baixa. E posso dizer que é um vinho fresco porque tem uma acidez elevada.” O mesmo adjetivo para duas realidades diferentes.

Em anexo, pode consultar as fichas técnicas dos vinhos referidos.

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