1. Amigos imaginários: a partilha de um mundo fantasioso

Aos quatro anos de idade, o filho de Maria* tinha quatro amigos imaginários — a cabra, o jacaré, o cão e o lobo mau — quase sempre responsáveis pelos disparates lá de casa, quando as coisas ficavam sujas ou até partidas. “Era uma catrefada de animais e eram todos os tipos de disparates, nunca tinha sido só ele”, conta a mãe ao Observador. Com a casa cheia de criaturas invisíveis que, à semelhança do rapaz de agora sete anos, eram muito trapalhonas, Maria viu-se forçada a despejá-las. Certo dia, depois de uma conversa entre mãe e filho, a criança dirigiu-se para o caixote do lixo na cozinha e, com as mãos, fez o sinal de quem se estava a despedir dos amigos (como quem diz a colocá-los no caixote).

Mas como a imaginação não tem limites, mais tarde seria a vez de um amigo na forma de um ser um humano, sem patas ou cauda, mas com dois olhos, uma boca e um nariz: “Apresentou-mo como sendo o amigo imaginário, de nome Joaquim. Falou como se ele estivesse ali ao lado”, conta a mãe. O amigo Joaquim é um colega de escola com uma vida e família próprias, que vai aparecendo sem hora ou data marcada para suprimir o facto de, em casa, o rapaz não ter ninguém da sua idade com quem brincar. Nada que preocupe a mãe, que olha com alguma magia para a situação: “Nunca houve nada que me assustasse. Temos é de aprender com eles.”

De facto, as crianças começam a brincar ao faz de conta por volta dos dois anos, “idade em que já conhecem muitas palavras, imitam muitas ações e exploram tudo à sua volta”, diz a psicóloga Vera Lisa Barroso. É nesta fase que os mais pequenos começam a emprestar vida aos seus bonecos (e outros objetos) e a construir brincadeiras impregnadas de fantasia. “Por volta dos três anos surgem os amigos imaginários, que se mantêm no mundo das crianças até que a linha que separa o real da fantasia se torna mais nítida, ou seja, a partir da entrada no 1º ciclo [6/7 anos].”

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Os amigos imaginários, atesta a psicóloga, funcionam como interlocutores entre as brincadeiras e o mundo de fantasia das crianças; são companheiros por excelência que abatem a solidão de quem os inventa, além de serem uma fonte de segurança e proteção nos momentos mais difíceis, como as não tão raras mudanças de rotina. Mas quais são as vantagens de partilhar conversas e brincadeiras com quem não existe? À promoção de autonomia junta-se o acréscimo da segurança e da criatividade, mas também dos óbvios benefícios face ao desenvolvimento da linguagem, expressão e regulação emocional, assegura a profissional de psicologia.

Sobre os amigos sem corpo ou rosto, os pais devem agir com naturalidade e até validar a sua existência sem, no entanto, alimentar a ideia de que estes são reais. Não obstante, os amigos imaginários são “uma valiosa fonte de informação sobre o mundo interno das crianças”, o que permite dar a conhecer aos pais “aquilo que os seus filhos pensam, sentem e experimentam”, lembra Vera Lisa Barroso. E, já agora, os pais só se devem preocupar mediante situações em que a criança deixa de interagir com outras da sua idade, ou quando a relação com o amigo imaginário começa a interferir diretamente nas rotinas de bem-estar dos mais novos.

2. Amigos virtuais: a amizade dos anónimos

Não é o primeiro blogue, mas é sobre este que quer falar. Maria Francisca, 27 anos, criou o seu projeto em 2012, uma janela virtual onde podia desabafar sobre o que a atormentava, mas onde também podia “ouvir” os lamentos de tantas outras pessoas sem rosto, mas com voz. “No meu caso, as pessoas procuravam-me porque se identificavam com problemas colocados no blogue, enviavam e-mails a pedir ajuda e, depois, abriam-se comigo. Sempre achei isso muito gratificante”, explica ao Observador, acrescentando que este tipo de contacto acaba, eventualmente, por desenvolver laços de confiança mesmo entre pessoas que nunca se viram antes.

“Falo com algumas pessoas que não conheço pessoalmente. Não são meus amigos próximos (porque tenho uma rede incondicional de suporte cá fora), mas são pessoas com quem desabafo em caso de necessidade”, conta. E se no início as conversas são sobre assuntos leves, com o tempo as coisas vão escalando e os temas ganham outra intensidade, chegando a haver partilha de histórias mais pessoais — “Só assim se confia nas pessoas”. “Há muito aquela coisa do anonimato. Estamos a falar com pessoas que não conhecemos e, muitas vezes, isso ajuda a acabar com problemas de comunicação e facilita a confiança.”

No entanto, Maria Francisca tem bem presente a ideia de que este tipo de amizades é uma faca de dois gumes — por um lado é mais fácil ser-se honesta/o e dar-se a conhecer na internet, por outro é fácil apanhar pessoas com más intenções. Sobre isso, a psicóloga Cláudia Morais diz que o mundo virtual pode funcionar como uma plataforma para a exposição de pessoas mais inseguras, até porque existe, nesse contexto, maior facilidade em lidar com a rejeição (se for caso disso). Assim, “as pessoas menos competentes socialmente acabam por ter a sensação de pertença”, assegura a psicóloga.

Cláudia Morais lembra que o virtual facilita a partilha de intimidade, mas deixa ficar o aviso: “Pode acontecer expor-me mais do que devia e criar-se, assim, uma falsa segurança. Posso confiar em quem não me dê provas concretas de que seja uma pessoa confiável”. Os riscos estendem-se, inclusive, à conhecida expressão cyberbullying, pelo que há sinais de alarme a ter em conta (como quando alguém partilha elementos da intimidade de uma terceira pessoa). O conselho da psicóloga é, então, o de partilhar a informação de forma gradual — quanto mais conhecemos a pessoa, mais seguros nos sentimos.

3. Amigos coloridos: quais as vantagens dos “amigos com benefícios”?

“Esta é uma amizade colorida um pouco forçada”, começa por admitir Vasco*, que se rendeu aos encantos de uma aluna de intercâmbio vinda da terra do samba. A jovem brasileira aterrou no Porto há cerca de um ano e há dois meses que estão juntos, sem assumir qualquer compromisso, mas a gozar de intimidade tal e qual um casal de namorados. “Nenhum dos dois queria algo sério, até porque sabíamos que quando o intercâmbio acabasse isto também acabava — tinha um prazo de validade, tal como lhe chamamos.” Por esse motivo, continuam a usar o termos “amigos coloridos” ou, como dizem os brasileiros, “estão só ficando”.

Apesar das circunstâncias menos convencionais, o engenheiro eletrotécnico de 25 anos admite que aquela tem sido uma das melhores relações em que já esteve: “É tudo muito tranquilo, sem ciúmes, sem pressões ou cobranças. E a simplicidade com que as coisas foram acontecendo…”. E a intimidade? “Foi fantástica e quase instantânea”, diz, ao mesmo tempo que se recorda que a amiga está quase de partida. “Se ela ficasse, quase de certeza que assumíamos uma relação.”

Mas o que se pode entender, então, por amizade colorida? É o sexólogo Fernando Mesquita quem responde, ao dizer que este tipo de união remete para “duas pessoas que têm encontros sexuais ocasionais e em que não existe um compromisso de fidelidade ou de cariz emocional”. Isto pode surgir de várias formas, entre amigos, com pessoas que se conhece na internet ou até considerando um casal de ex-namorados — o que, a julgar por Mesquita, é muito frequente.

https://twitter.com/_Alina_Kitova_/status/608262267730317312

O sexólogo defende que, mesmo numa relação sem compromissos, há regras e limites que devem ser discutidos logo à partida, de modo a que ambos estejam a jogar o mesmo jogo. Posto isto, é comum existir um desequilibro (ou um ténue equilíbrio) no que às expetativas diz respeito: “Geralmente, e não quero dizer que seja a regra, os homens estão numa postura mais sexual e puramente física, enquanto as mulheres podem pensar que, de uma coisa mais física, a relação parta para algo emocional. A mulher consegue ser mais esperançosa, apesar de hoje em dia se encontrar cada vez mais o contrário”.

“Este tipo de relações é um preenchimento de vazio muito efémero. É naquele momento, é uma ilusão”, acrescenta Fernando Mesquita, aproveitando para dar exemplos de quem as possa preferir — desde os eternos solteirões ou solteironas, que se recusam a dar satisfações a quem quer que seja, às pessoas que simplesmente estão em fases nas quais não lhes apetece assumir compromissos ou que ainda não encontraram a pessoal ideal para terem a seu lado.

Sendo ou não uma ilusão, a ideia de secretismo associada aos amigos coloridos é estimulante para ambos e, hoje em dia, a mulher tem uma liberdade sexual que lhe permite entrar nestas aventuras (com ou sem o cinto de segurança).

4. Amigos de infância: a empatia é o que mais os une

São fisicamente parecidos e têm o sotaque alentejano na ponta língua. Quase só muda a constituição — um é mais gordo do que o outro, como João António faz questão de contar. Ele e o melhor amigo (José Manuel) nasceram na mesma terra, numa região marcada por montados e oliveiras a perder de vista e numa altura em que se estudava pouco e trabalhava muito. Não só cresceram juntos, como traçaram percursos semelhantes, dentro e fora do país, sem nunca perderam o rasto a uma amizade que já leva cinco décadas de existência. Atualmente, já os dois contam para cima dos 60 anos, mas continuam a falar-se regularmente, a partilhar e a recordar histórias como se ainda fossem dois moços de aldeia.

“Tudo parte da escola, ‘tá a ver? Logo aos 11 anos”, conta João António, que começa por recordar os tempos dos livros e dos cadernos, quando os dois amigos se conheceram. Esse seria o início de uma grande aventura. Seguiu-se a vida laboral, tanto nos campos do Alentejo a tirar a cortiça das árvores, como nas obras do Algarve. E até além fronteiras, quando ambos decidiram emigrar, embora em alturas diferentes, para dedicar dez anos das suas vidas a uma fábrica na Suíça.

Mas os seus caminhos também se cruzam nas lides do amor e recuam até aos tempos da adolescência, quando ambos faziam 20 quilómetros numa única motorizada para chegar a tempo dos bailaricos, onde iam à procura de namoradas. E só tinham olho para as mais bonitas — “A gente não falha nada!”, atira João num tom jocoso. Mais tarde, arranjaram umas “meninas mais seguras”, também na mesma altura, da mesma aldeia e do mesmo monte.

“Ele é aquela pessoa que a gente arranja uma amizade de que não se esquece. Atualmente, ele está no Seixal. Eu telefono-lhe e ele telefona-me sempre. Ah! E as nossas filhas são as melhores amigas, foram criadas juntas.” E será que são fisicamente parecidas? Sim, de outra forma não poderia ser. 

https://twitter.com/simaopovoa/status/617867078721241088

Sobre laços que não se partem, Fernando Almeida explica que “as adversidades podem contribuir para separar as pessoas, mas também para criar cumplicidades”. O psiquiatra e professor no Instituto Universitário da Maia apressa-se a argumentar que existem valores intemporais, mas que para que duas pessoas permaneçam amigas ao longo do tempo é preciso respeito mútuo: “É preciso que se respeitem e que tenham uma grande capacidade de desculpar ou de compreender o outro em certas circunstâncias, caso contrário a rutura é mais fácil”.

A amizade tem por base, nas palavras do psiquiatra também associado ao Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, a capacidade de responder adequadamente às insuficiências dos outros: “Eu tenho de compreender as capacidades, os atributos e as limitações do outro e não esperar dele aquilo que ele não me pode dar.”

Fernando Almeida justifica que para se ser amigo de alguém é preciso confiar nessa amizade, isto é, “confiar que o outro é capaz de ser meu amigo e de se manter meu amigo, ainda que faça qualquer coisa que eu não compreenda”. Lembra ainda que a amizade não é cobrar; que o melhor é partir do principio de que o outro não tem obrigações para connosco, caso contrário a probabilidade de as coisas correrem mal é maior.

5. Camaradas de armas: a união que fez (e que ainda faz) a força 

“Não são meus amigos, são meus camaradas de guerra, que é muito mais que isso”, dizia o escritor António Lobo Antunes em novembro de 2005, aquando do lançamento da obra D’este viver aqui neste papel descripto – Carta da guerra. O livro, editado pela Dom Quixote, contém as transcrições integrais das centenas de aerogramas que o escritor mandou à primeira mulher, Maria José Xavier da Fonseca e Costa, durante a sua comissão em Angola, entre janeiro de 1971 e janeiro de 1973.

Lobo Antunes fala recorrentemente do tema nos seus textos. Exemplo disso são algumas das crónicas que foi publicando ao longo do tempo:

“Falar nos meus camaradas comove-me: a expressão irmãos de armas é tão verdade. Enquanto nos aguentarmos por cá. Mesmo depois. Zé Jorge: continuamos irmãos de armas. Cabo Sota: admiro a tua coragem até ao fundo da alma. Sozinho com a Breda, uma metralhadorazeca, aguentou um ataque.” (in “Crónica descosida porque me comovi”, Visão, junho de 2008)

“Ao contrário também do que muitos supõem o Ernesto não era um civil fardado: era profundamente militar no sentido em que o meu avô o foi até à morte e se orgulhava disso: no sentido da servidão, da camaradagem e do orgulho. Sempre me irritou ouvir falar mal da tropa: a melhor recompensa que recebi na vida consiste no amor dos meus soldados, na estima dos oficiais com quem privei. Em Angola, o Melo Antunes era adorado e respeitado. Pela sua autoridade natural, pela sua alma generosa e, perdoem-me a má criação, pelos seus colhões.” (in “Crónica Ernesto Melo Antunes”, Visão, novembro de 2012

Tropas portuguesas na Guiné: tudo acabou depressa

Tropas portuguesas na Guiné / Arquivo DN

Em causa estão indivíduos que tendem a reger-se por um corpo comum. Para trás fica a noção de sujeito singular, este que se integra num grupo coletivo, explica o psiquiatra Fernando Almeida. A ideia de camaradas de armas assenta nas regras em comum e no tempo partilhado, durante o qual podem acontecer episódios bons e maus. Factos que certamente ficam para a posteridade.

“Nestas circunstâncias, as pessoas partilham seguramente momentos difíceis, em que o outro mostra a sua coragem e até põem em causa a sua vida em nome dos princípios do grupo coletivo — isto cria laços muitos fortes. É inesquecível e dá uma força imensa”, defende o psiquiatra, que lembra que em contexto de guerra existe um perigo iminente, uma situação de sacrifício que coloca para terceiro plano as dificuldades do quotidiano. Em causa está a ideia da gratidão e da estima, “sentimentos que, uma vez incrustados no nosso ser, não saem facilmente”.

* Nomes fictícios. Estas pessoas não quiseram ser identificadas.