O Presidente da República já marcou as eleições legislativas, mas isso não significa que o atual Executivo entre em período de governo de gestão. De acordo com a Constituição, esta formulação só tem existência prática quando o Presidente da República dissolve o Parlamento (como fez Jorge Sampaio em 2004) ou quando aceita a demissão do primeiro-ministro (como aconteceu em 2011 com José Sócrates).

O PS tem vindo a insistir nas últimas semanas que o atual Governo está a exorbitar funções e decidir à pressa matérias importantes que vão condicionar o futuro Executivo. Esta quinta-feira, depois de Cavaco Silva ter assinado o decreto presidencial a marcar a data das legislativas, voltou à carga. No fundo, a oposição considera que o Governo de Passos já não tem legitimidade política para decidir sobre privatizações (esta quinta-feira o Conselho de Ministros aprovou a venda da CP Carga, a última privatização deste Governo) ou fazer a rotação de embaixadores no estrangeiro.

O que diz a Constituição, no artigo 186, é que “antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”. O texto não diz preto no branco o que são esses “atos estritamente necessários”, mas há jurisprudência e posições de constitucionalistas que ajudam a definir a barreira que não deve ser ultrapassada.

Jorge Miranda, um dos pais da Constituição, considera que o texto foi deixado “propositadamente” indefinido porque pretendeu-se que o conceito fosse flexível para se adequar às conjunturas políticas. Isso foi considerado mais importante do que cingir a atuação do Governo e colocá-lo de mãos atadas em caso de situações urgentes.

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Segundo Jorge Miranda, um Governo demitido não deve tomar decisões que condicionem a liberdade do Governo seguinte e aqui o Presidente tem um papel importante porque pode recusar promulgar determinadas decisões por considerar que violam o disposto na Constituição.

O próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre este tema polémico. Em 2002, o então Presidente, Jorge Sampaio, teve dúvidas sobre se devia ou não promulgar um decreto-lei do Governo de António Guterres sobre o regime jurídico dos hospitais e centros de saúde. Na resposta, os juízes do Palácio Ratton consideraram, no acórdão 65/02, que o “critério decisivo” é o da “estrita necessidade da sua prática” e que o legislador constitucional não quis restringir o âmbito dos atos que um Governo de gestão apenas aos “chamados atos de gestão corrente” –  “o interesse público pode reclamar a prática inadiável, por exemplo, de atos legislativos”.

Já outro acórdão de 1984 referia que “perante certa situação dos negócios públicos, o governo [demitido] terá naquela altura de dar um ato de resposta (inadiabilidade)” e esse “ato de resposta terá de estar em relação directa com a situação a resolver (proporcionalidade)”.

A necessidade, segundo outro acórdão (de 1988), deve ser avaliada em função da importância da decisão “em termos tais que a omissão do ato afetasse de forma relevante a gestão dos negócios públicos” e do “prejuízo em deixar a resolução do assunto para o novo governo ou para momento ulterior à apreciação do seu programa”.

Quando Cavaco Silva aceitou a demissão do primeiro-ministro José Sócrates, em 2011, explicou na comunicação ao país o que eram as competências de um Governo de gestão, esclarecendo que este não estava “impedido de praticar os atos necessários à condução dos destinos do país, tanto no plano interno, como no plano externo”.

Os limites da atuação dos governos de gestão tem sido sempre polémicos ao longo dos anos e suscitado dúvidas quer aos partidos de oposição quer aos Presidentes. António Guterres, por exemplo, aprovou mais de cinquenta decretos-lei em governo de gestão – um desses casos foi a aprovação da construção do ‘outlet’ do Freeport, em 2002. A decisão de reconhecer utilidade pública ao polémico projeto do GES Portucale, em Benavente, também foi tomada durante o governo de gestão de Pedro Santana Lopes, nos últimos dias do mandato em 2005. Três dias depois de Santana ter perdido as eleições legislativas para o PS, adjudicou a instalação e manutenção do Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP) noutro ato polémico que, porém, não foi anulado. António Costa, o ministro da Administração Interna do PS, que se seguiu pediu um parecer ao Conselho Consultivo da PGR sobre se aquela decisão do Governo anterior era válida e a PGR confirmou, embora com divisões internas, o ato de gestão do Governo de Santana.

No livro “Governos de Gestão”, o jurista e fundador do CDS, Diogo Freitas do Amaral, considera que “os atos da função política e da função legislativa devem todos eles considerar-se excluídos da competência dos governos de gestão” e que a ação governativa deve limitar-se à “gestão diária e corrente”, deixando o Governo de poder aprovar projetos ou decretos-lei e eventuais nomeações, exceção feita para questões “inadiáveis, que possam prejudicar o país”.

A demissão do primeiro-ministro ou dissolução do Parlamento implica a caducidade de todas as autorizações legislativas, ou seja, o Governo deixa de poder legislar sobre matérias para as quais o Parlamento já havia dado luz verde.