Uma lição da crise portuguesa de 1978 que muito poderia agora, em 2015, ajudar a Grécia em particular e o Eurogrupo em geral é que, quando a crise aperta e o socialismo vai para a gaveta, os credores chegam e a televisão desperta. Senão (re)vejamos o que aconteceu em Portugal aquando da primeira vinda do FMI, que oficialmente só teve lugar em 1978 embora se negociasse há meses.

O I Governo caíra a 7 de dezembro de 1977 e Mário Soares estava quase, quase a mandar-nos meter o socialismo na gaveta enquanto, antecipando-se 27 anos a Tsipras, tratava de lembrar aos críticos dos acordos com o FMI que na hora de verdade, ou seja no momento de meter dinheiro em cima da mesa, “nenhum partido ou entidade apresentou, para a resolução do problema, qualquer outra alternativa válida.”

“Reduzir drasticamente o défice” e “ter coragem de praticar uma política de autêntica austeridade” – onde é que nós já ouvimos isto? – era o que nos restava. E claro ver televisão.

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Em janeiro de 1978 toma finalmente posse o II Governo. O PS havia de levar o CDS para São Bento ou seja a esquerda e a direita iam governar juntas. Algo a que a crise obrigou e que a RTP antecipara quando meses antes pusera no ar um concurso que veio a ser um dos seus maiores sucessos: A Visita da Cornélia, em que a esquerda e a direita cantaram, riram e representaram. Na verdade, A Visita da Cornélia não foi um concurso. Foi um salto epistemológico.

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https://www.youtube.com/watch?v=6tj7_ASMqZg

Apresentado por Raul Solnado e Fialho Gouveia, e pela vaca Cornélia, o concurso rodava em torno das prestações de três pares de concorrentes, dos quais apenas um passava à semana seguinte. Provas de canto, dança, teatro e cultura geral davam conta dos talentos dos participantes. Alguns, como o jornalista Assis Pacheco e Hugo Maia Loureiro com duas participações no Festival da Canção já eram figuras conhecidas. Outros, como Keil do Amaral (Pitum), José Fanha, Tozé Martinho e Gonçalo Lucena tornaram-se rapidamente populares graças à sua presença nos pares que a cada segunda-feira lutavam pelo pódio. A pertença política dos concorrentes e dos membros do júri agitava o público e atiçava os ânimos. Mas há um dado incontornável: depois de, entre junho a novembro de 1977, a esquerda e a direita terem batido palmas uma à outra, o país estava preparado para ver o PS e o CDS sentados no mesmo governo.

Quanto à luta de classes essa deixara de ser o motor da nossa História e tornara-se o motor dos guiões da telenovela Gabriela, Cravo e Canela. Dramatizada a partir de um romance de Jorge Amado, “a Gabriela”, como ficou conhecida, trouxe erotismo, ironia e ternura a uma televisão que estava ela mesma a recuperar do seu PREC particular.

https://www.youtube.com/watch?v=r0twMgA7OC4

Gabriela estreou a 26 de maio de 1977 e prolongou-se até novembro. Enquanto seguiam a luta entre o passado representado pelos coronéis do mundo das fazendas e o futuro protagonizado pelo descendente de uma família de políticos, o dr. Mundinho Falcão, os portugueses habituavam-se à ideia de que era melhor trocarem os arrebatamentos da vitória final pelos menos épicos mas mais eficazes acordos e alianças. Em resumo, Nacib voltou a viver com Gabriela, Mundinho substituiu o coronel Ramiro e o PS negociou apoio parlamentar com o PPD, fez um governo com o CDS e um acordo com o FMI.

Seja como for os representantes do FMI não chegaram sós. Enquanto os tecnocratas desse símbolo do capitalismo desembarcavam na Portela chegava também proveniente do Brasil uma outra telenovela que excedeu tudo o que se possa imaginar em termos de sucesso. A Escrava Isaura, obviamente. Das propostas do FMI não podemos garantir a infalibilidade mas no que à Escrava Isaura respeita o resultado é invariavelmente o mesmo onde quer que seja exibida: povos inteiros esquecem-se das dificuldades das respetivas vidas para seguir com atenção e paixão as desventuras da escrava branca, vítima da loucura e da maldade de Leôncio, o filho do seu proprietário. Os brasileiros defendem que o sucesso da Escrava Isaura chegou mesmo a Abbottabad, no Paquistão, que é o mesmo que dizer à casa de Bin Laden. Infelizmente não podemos nós confirmar nem desmentir essa informação pois o presidente Obama nesse dia não estava muito virado para o diálogo e não deu tempo ao líder da Al Qaeda de esclarecer esses e outros ponderosos assuntos!

https://www.youtube.com/watch?v=1hqWNYN3DZI

Pode parecer hoje um pouco embaraçoso mas as vidas da Escrava Isaura e do II Governo Constitucional estiveram ligadas desde o primeiro momento: o governo PS mais CDS chegou no fim de janeiro de 1978. A Escrava Isaura em fevereiro.

No verão terminou a Escrava Isaura (em Julho) e o Governo caiu (em Agosto). Ou seja, quando Isaura finalmente se livra de Leôncio, do tronco da tortura, daquele penteados com canudos e do casamento com o corcunda Belchior, os ministros do CDS demitiram-se.

A fazer fé nos jornais da época, os ministros demitiram-se no dia 24 de agosto de 1978 pelas às 12h15. Gesto mais ou menos impensável caso a Escrava Isaura ainda estivesse no ar pois esta telenovela era transmitida no então Primeiro Canal às 12h30 (com retransmissão do episódio do dia anterior à noite, no Segundo Canal). Ou seja se a Escrava Isaura ainda estivesse a ser exibida, os ministros, demissionários ou não, arriscavam-se a que ninguém lhes desse pela falta pois não havia discussão sobre a Reforma Agrária – um dos motivos de divergência entre PS e CDS – que se comparasse às agruras vividas na Fazenda do Comendador Almeida.

Daí para a frente nada foi como dantes: passámos para a fase dos governos de iniciativa presidencial cujos executivos chegavam e partiam a uma velocidade que só não era estonteante porque há meses que os portugueses, sobretudo os mais jovens, tinham aderido às viagens intergalácticas da USS Enterprise, a nave que tal como a Escrava Isaura chegara a Portugal em fevereiro de 1978. A USS Enterprise levava os portugueses pel’ “O Caminho das Estrelas” todas as sextas-feiras pouco depois das 21h30. Nesse ano de 1978, enquanto os sucessivos governos ainda tinham como espinhosa missão fazer voltar os militares aos quartéis, o capitão Kirk instalava-se nas nossas casas e no nosso imaginário com um à vontade que até parecia saído de uma das desaparecidas sessões de dinamização cultural do MFA. Com ele vieram Mr. Spock, a enfermeira Christine, o comandante Scot e o médico McCoy e uma multidão dos seres que povoavam a Federação de Planetas.

Convém esclarecer que a nossa capacidade para nos orientarmos no mundo das galáxias já tinha sido adestrada em 1977 quando no mesmo horário a RTP exibira o Espaço 1999 em que o Comandante John Koenig, a médica Russel e demais tripulação (a que se junta a muito fotogénica Maya) se confrontam com uma errância pelo Universo causada por uma explosão atómica.

https://www.youtube.com/watch?v=0cq7isloJj8

Em tempos de grandes blocos mundiais, de equilíbrio do terror entre os EUA e a URSS, estas séries prestavam-se a várias leituras políticas. Mas em Portugal a todas essas interpretações havia que juntar ainda outra: apesar dos orçamentos e da política nacionais em alguns dias se assemelharem aos meandros do Planeta Rómulo – quem viu O Caminho das Estrelas esteve lá e sabe do que falamos! – não havia sítio melhor para viver do que este jardim à beira mar plantado.

Por fim, e para que não nos faltasse mesmo nada, a RTP deu-nos a conhecer A Abelha Maia. Uma abelha que na companhia do gafanhoto Flip desbravava a floresta. Contado assim não tem nada de especial mas a Maia era bem engraçada e sobretudo tinha uma banda sonora mais irresistível que o mel interpretada por Ágata.

https://www.youtube.com/watch?v=fBl-U947p_g

A Abelha Maia, a seguir aos sucessos da Heidi e do Marco dos anos anteriores (em caso algum caiam na tentação de os mostrar hoje às criancinhas lá de casa!), foi mais uma ferroada nas animações checoslovacas, polacas, búlgaras e valha a verdade também canadianas que Vasco Granja se esforçava por dar a conhecer. A chamada geração Granja tem uma fratura ideológica profunda: de um lado estão os que viam atentamente o Lápis Mágico e outras animações de Leste. Do outro, os que esperavam pelas tropelias de Buggs Bunny e do Coyote. Fica ao critério dos leitores descobrir quais engrossaram as fileiras da esquerda e da direita.

https://www.youtube.com/watch?v=drAraNFt3y4

Contudo, para sermos justos, a maior lição para vivermos em crise veio não da televisão mas de um faz de conta da televisão: a Tele-Culinária. Num país em crise, o mestre Silva (que em 1975 tivera uma rubrica na RTP) inventou uma revista que parecia saída de um programa de televisão mas que não correspondia a nenhum programa então no ar. A crise, a austeridade, os cortes podiam vir à vontade, que todas as semanas a “receita filmada” de Mestre Silva ensinava a fazer pratos económicos mas “com certo requinte”.

Em conclusão, quando em Portugal o socialismo foi para a gaveta a televisão saiu do armário. E teve o seu ano de ouro.

Logo em 2015 Tsipras só tem de fazer uma coisa: desembaraçar-se de vez de Varoufakis e respetivos planos de conspiração tão maus, mas tão maus, que devem ser inspirados em algum filme alternativo e contratar profissionais. Para a política e para a televisão.

Como se viu em Portugal, em 1978 fez toda a diferença.