Uma mulher acaba de ter um filho que vai entregar a outra mulher. Até quando pode ela decidir que recusa dar aquela criança? Deve ou pode ela amamentar aquele bebé? Estas e outras questões estão num limbo.

Há precisamente nove anos Portugal legislava sobre a reprodução medicamente assistida. Rapidamente desatualizada por questões como as barrigas de aluguer, essa legislação mantém-se ainda em vigor. Porquê? “Falta de coragem política” declara Miguel Oliveira da Silva. Obstetra, ex-presidente Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), Miguel Oliveira da Silva deixa um aviso: “É óbvio que ganhe quem ganhe as próximas eleições isto vai voltar a estar em cima da mesa.”

“Esta lei é de 2006. Posteriormente a isso veio o casamento dos homossexuais e coloca-se a questão de saber se os homossexuais podem ou não ter acesso às consultas de procriação medicamente assistida. Há aí alguma ambiguidade legal. Os deputados não quiseram entrar nessa área obviamente. Mais tarde ou mais cedo vão ter de entrar” – declara este professor de Ética Médica.

Mas não é apenas o casamento entre pessoas do mesmo sexo que suscita novos problemas ou sequer o que neste momento gera maior polémica. A maternidade de substituição, barrigas de aluguer ou gravidez/gestação de substituição é um dos assuntos que mais controvérsia tem gerado e que levou mesmo a Assembleia da República, no final de 2011, a pedir um parecer sobre a matéria ao CNECV, então presidido por Miguel Oliveira da Silva. O parecer chegou em março de 2012. Mas a AR deixou cair o tema. E a opinião pública e publicada também.

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Aliás, quem se orientar unicamente pelos sobressaltos das redes sociais acreditará que em 2012 o CNECV viveu momentos de grande tensão interna a propósito da aprovação de um parecer cuja temática era não a maternidade de substituição mas sim o racionamento dos medicamentos. Nada mais enganador. Esse parecer que tanta tinta e comentários fez correr foi aprovado por unanimidade: “O erro foi não se ter feito um glossário em que se explicasse que a palavra racionamento tinha um significado que não era o significado político mas sim que era um termo técnico de economia da saúde.” – recorda Miguel Oliveira da Silva.

Pelo contrário o parecer sobre a “Procriação Medicamente Assistida e Gestação de Substituição” dividiu o CNECV ao meio. Um relator (Jorge Reis Novais) fez um parecer alternativo. Foram apresentadas várias declarações de voto e uma declaração conjunta. Para Miguel Oliveira da Silva não é indiferente, logo à partida, falar-se em barrigas de aluguer, em maternidade de substituição ou em gravidez de substituição: “Não é por acaso que se utiliza uma palavra ou outra. Não é indiferente falar em barrigas de aluguer ou em gravidez/gestação de substituição.” Aliás também não foi por acaso que no parecer do CNECV de 2012 que se apresentava como tratando da “Procriação Medicamente Assistida e Gestação de Substituição” se escreveu: “A semântica escolhida nunca é indiferente em bioética”.

Sobre as barrigas de aluguer o ex-presidente Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) é peremptório: “É uma exploração da mulher e do corpo da mulher como quem empresta uma caneta”. Mas “em condições absolutamente excecionais, em que não possa haver qualquer vínculo económico ou financeiro de dependência recíproca de uma em relação a outra, posso admitir em tese que uma irmã empreste o útero a outra irmã e que não ganhe dinheiro por isso, como é evidente. Posso admitir em tese que uma mãe jovem, 38/39 anos, empreste o útero à sua filha que teve o azar de nascer sem útero (…) Nos países onde a gravidez de substituição (chamada noutros casos maternidade de substituição), na esmagadora maioria dos casos o que se vê é que quem empresta o útero é alguém numa situação de dependência ou de subordinação financeira ou económica em relação à pessoa que vai beneficiar da criança que vai nascer. E portanto é, de uma forma camuflada ou não, uma barriga de aluguer, de uma forma camuflada ou não, uma exploração do corpo, de uma forma camuflada ou não, uma exploração até de sentimentos.”

Nada é simples nestas matérias. Por exemplo, devem os contribuintes pagar fertilizações em mulheres com 60 anos? Uma mulher que vai ter uma criança para entregar a outra deve poder decidir sobre esse assunto apenas até ao início do parto?…  Em cada um destes casos as soluções parecem sempre encerrar novos problemas. Como afirma Miguel Oliveira da Silva “a história da bioética está cheia de ótimas ideias, ótimas intenções, para resolver um problema. Por melhores que sejam as ideias e as intenções às vezes os problemas que se arranjam são mais importantes que aqueles que se queriam resolver.”

Curiosamente, no meio das polémicas que rodeiam estas matérias, acaba-se a subestimar aspetos de enorme importância. Por exemplo, o acesso à informação sobre o desempenho dos centros de reprodução medicamente assistida: “Há centros em que a taxa de obtenção de uma criança saudável por ciclo é de trinta e tal, quarenta por cento e outros em que é metade ou menos que isso”, frisa Miguel Oliveira da Silva. Não está sozinho nesta posição: em 2012 o CNECV recomendou que passassem a ser divulgadas publicamente as taxas de eficácia dos diferentes centros de procriação medicamente assistida.

Até agora, explica, nada mudou: “O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida tem esses dados e não os quer divulgar. Portanto, se não os quer divulgar, está a fazer um péssimo serviço à população e ao país.” Por isso, antes que a discussão estale de novo o melhor é ver e ouvir o vídeo desta entrevista.