Num fim-de-semana, esta paisagem mudou de forma drástica. Iguais, apenas o campo de milho, o terreno lavrado, a linha ferroviária e a distante torre de vigilância da antiga fronteira. Está uma manhã de outono solar e junto à linha férrea avançam grossos grupos de caminhantes. Já não andam pelas travessas do caminho-de-ferro, mas num caminho lateral que nem se notava na semana passada. Parecem peregrinos, mas não podia haver multidão mais heterogénea. Famílias, homens sozinhos, muitas crianças, várias raças e línguas, talvez diferentes religiões, roupas coçadas, muitas cabeças de mulheres cobertas por lenços, alguns homens de chinelos, como se tivessem chegado ali para uma longa espera.

Estou a um quilómetro da fronteira entre a Hungria e a Sérvia, um quilómetro dentro da União Europeia e do espaço Schengen de livre circulação, numa estrada estreita que vai até à vila de Roszke, terra de agricultores. No campo onde são recebidos os refugiados que tentam chegar à Alemanha e à Europa rica, onde na sexta-feira havia algumas dezenas de caminhantes, está agora uma amálgama de pessoas, uns em filas compactas para entrarem nos autocarros, outros resignados ou em desespero.

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Um homem diz-me que está ali há três dias com seis mulheres e três crianças, mas um polícia húngaro esclarece logo em voz baixa que esta gente chegou nas últimas horas. Chegaram todos hoje, insiste o chefe da polícia: serão quantos? 500? 1000? O que é sem dúvida verdade é aquilo que o homem me diz sobre as condições de higiene: algumas casas de banho portáteis para centenas de pessoas. Uma adolescente vestida com uma camisola de algodão, também refugiada da Síria, diz que teve muito frio nessa noite, o que não surpreende, pois as noites são frescas e a televisão húngara informou que muitos refugiados entram no campo de registo resfriados e com problemas de saúde. “Esta mulher está doente”, diz um homem exaltado, apontando para uma senhora de ar tristonho. Alguns protestos são confusos: uma jovem grávida afirma que os refugiados não precisam de médicos, mas de seguir caminho.

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Enfim, para todos estes migrantes, falta ainda um bocadinho de paciência, uns longos 500 metros para terem acesso ao campo com tendas militares e médico. Aqui, na recepção desta loucura, só há garrafas de água e sanduíches. Muitos polícias e também filas de autocarros para transportar toda esta gente até ao campo. Enquanto os sírios pedem ajuda para as famílias e a polícia garante que mulheres e crianças têm prioridade, o facto é que as filas compactas dos que vão embarcar são só de homens jovens. Talvez haja essa necessidade: primeiro, tirar dali os mais agressivos.

A parte impressionante da cena é que a torrente humana não está apenas a engrossar, mas a duplicar. E à distância, caminham ainda mais, rumo à Europa.

Processo em cadeia

Os rios europeus não costumam descer de sul para norte e uma das raras excepções acaba aqui perto, o Maros, que vem da Transilvânia. E assim corre este rio de gente, de sul para norte, com muitos obstáculos pelo curso, que funcionam como barragens e diques. Estes refugiados percorreram a rota balcânica com ajuda de redes de traficantes que fazem bom negócio, mas na Hungria, ao entrarem no espaço Schengen, as coisas mudam. Todos eles entram, mas o registo é obrigatório, apesar da forte resistência dos refugiados, que pensam que assim não poderão seguir para onde querem.

Os recém-chegados ao campo improvisado da linha férrea só poderão ir para o campo de registo quando este estiver esvaziado, ou seja, quando os mil que lá estão tiverem seguido para campos de refugiados noutras cidades, que por sua vez estão a abarrotar, pois leva tempo a concluir os procedimentos de asilo, a que nem todos terão direito (os sírios têm prioridade). A sequência é simples: se não passarem da Hungria para a Áustria no mesmo número dos que chegam da Sérvia, haverá um coágulo de gente. Foi o que aconteceu este fim-de-semana, quando a Hungria ficou praticamente paralisada; é o que se pode repetir nos próximos dias, se o ritmo diário de entradas na fronteira sul passar de 3 mil para 5 mil, como se prevê.

A mistura de refugiados e de imigrantes económicos em larga escala complica a actuação das autoridades. Nos países europeus menos afectados não faltam lições de moral sobre a crise, mas as soluções são mais difíceis de visualizar. Os federalistas defendem que esta é a altura certa para se avançar com políticas comuns nas áreas de fronteiras, imigração e asilo. Seria Bruxelas a coordenar situações como esta, a distribuir refugiados pelos Estados-membros, a fazer campanhas de dissuasão nos países de origem dos refugiados. O grupo de Visegrad, que reúne quatro países da Europa Central (Polónia, República Checa, Eslováquia e Hungria) resiste a estas intenções, sobretudo na questão da imigração. Esta crise ainda mal começou e vai criar divisões na Europa.

Antes da inundação, o governo de Viktor Orbán tomou a controversa decisão de construir uma vedação em arame farpado, o que evitou um problema maior, pois agora, em vez de irem a corta-mato por todo o lado, os refugiados passam apenas por meia de dúzia de pontos fáceis de policiar. A Hungria foi acusada de erguer um muro que mantinha os refugiados fora do país, mas esse muro é uma simples vedação de arame farpado que dificulta o trabalho dos traficantes. A decisão permitiu controlar a fronteira e gerir minimamente a calamidade: todos entram por sítios específicos, como Roszke, neste caso a pé pela linha férrea. O fim da entrada a salto significa que, em princípio, todos podem ser registados.

Cada país europeu tem a sua própria política de imigração e muitos recusam a ideia de quotas permanentes, ou seja, não querem ceder soberania. A Alemanha precisa de mão-de-obra, mas não pode receber toda a gente. Os ‘países de leste’, mais pobres, aceitam refugiados, mas recusam imigrantes de que não necessitam para as suas economias.

Ninguém sabe como se pode conter este rio. Na Hungria, a crise está em todas as conversas e é um dos temas da política interna. O Governo conservador de Orbán, apesar de ser muito criticado no estrangeiro, conseguiu a proeza de segurar a fronteira, assegurar a entrada de todos os refugiados e não permitir a travessia caótica do seu território. A oposição de esquerda defende o livre trânsito dos refugiados e a única figura à altura de Orbán, o ex-primeiro-ministro Ferenc Gyurcsany, agora líder de um pequeno partido de esquerda, já fez uma visita mediática à fronteira sul, passando para o lado sérvio, com sanções que poderá explorar politicamente. A oposição de extrema-direita parece ter cometido um erro político, ao exigir a recusa de todas as entradas, o que seria uma atitude desumana que poucos aqui aprovam.