Neste ponto da fronteira chegaram, na madrugada de domingo e até às 8 da manhã, mais de 890 refugiados. Um grupo sentou-se à porta do centro de registo e resiste a dar as impressões digitais. Serão duas dúzias e os polícias dizem-me que há ordens para não se falar com eles. Perto do novo campo vê-se muito lixo, papéis rasgados escritos em grego e, para meu espanto, um pedaço cortado à tesoura de um documento de identificação de Portugal. O nome do país é claro, mas trata-se de um cartão falso, bastante rústico, na cor, na imprecisão das letras. Atrás, pode ler-se parte da filiação do nosso cidadão: Santo Raoul VLEF… Que estará este pedaço de plástico a fazer aqui, no meio de uma crise de refugiados sem precedentes na União Europeia?

O novo campo de registo de Roszke, na fronteira húngara com a Sérvia, tem arame farpado no topo da vedação (o anterior não tinha). A entrada é mais estreita e falta o grande pavilhão azul onde dormiam as crianças. Foi acabado à pressa esta noite, após um motim de refugiados que preferiram dormir ao relento e à chuva. As tendas militares do novo campo estão organizadas em filas ordeiras, mas o local parece mal terminado. Tem uma entrada estreita e foi construído para maximizar a segurança, com logística mais difícil. Um grupo de refugiados sentou-se à porta, os diferentes grupos nacionais já separados de forma espontânea; todos recusam dar a impressão digital e estão desconfiados dos polícias húngaros, que não falam inglês; um dos recém-chegados diz-me que este é o momento mais difícil da sua longa jornada.

Um dos jovens sírios com quem consegui falar disse chamar-se Ahmed Assaf. Era farmacêutico em Damasco, tem 23 anos e fala num inglês articulado. A conversa foi interrompida por uma simpática agente da autoridade, que consegui convencer, no meu húngaro infantil, da importância da entrevista. Ahmed disse ter partido há quatro semanas de um campo de refugiados na Turquia e contou que fez amizade com outros dois refugiados, que estão a seu lado, Abdullah e Noor, também de Damasco. Viajaram para a Grécia em barcos perigosos, enfrentaram as multidões compactas na Macedónia. Na Sérvia, preferiram não entrar em confortáveis autocarros controlados por homens armados e que lhes pediam 1500 euros por cabeça.

Muitos perigos, portanto, numa história semelhante à de outros refugiados, que se referem aos horrores da guerra e aos perigos da viagem. À porta do centro de registos, Ahmed e os seus amigos hesitam, mas o coração balança: lá dentro está a comida e o abrigo, mas com o risco de os fazer tomar um rumo inesperado. Foi pelo menos o que lhes disseram. O farmacêutico deseja ir para a Holanda, mas leu algures que se der a impressão digital aos polícias húngaros não poderá ir para onde quer, mas irá para a Alemanha. Estes rumores são espalhados pelos traficantes, que beneficiam da confusão, pois podem assim cobrar mais dinheiro. É caro salvar a vida nestes dias: 4 mil euros, para passar dos campos de refugiados na Turquia até à fronteira da UE. E se o barco afunda no mar Egeu, os traficantes já receberam e não se importam.

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Um membro da protecção civil húngara, Karoly Simon, explica que, no centro de registos onde os refugiados ficam, procede-se apenas à identificação das pessoas, que recebem papéis de trânsito e uma pulseira que facilita o controlo policial. Em princípio, estes migrantes devem ser levados rapidamente para centros de refugiados na Hungria, mas a pressão dos números mudou a estratégia e os procedimentos vão ser acelerados. Uma coisa é certa: a partir de Roszke, não devia haver mais traficantes a explorar os refugiados, mas não é bem assim. Este tráfico humano é complexo e envolve muito dinheiro.

As tendas não vão servir para o inverno

Na sexta-feira, numa estrutura a duzentos metros do actual campo, agora uma ruína repleta de lixo e abandono, estava uma multidão. O proprietário do pavilhão foi ganancioso e as autoridades mudaram o campo para outro terreno, mas houve razões de segurança. Na sexta, assisti aqui a um momento de motim, que a polícia resolveu com dificuldade. Os refugiados estavam impacientes e queriam seguir caminho; alguns fizeram isso mesmo, invadindo a auto-estrada, ao mesmo tempo que em Budapeste, 160 quilómetros a norte, milhares de indocumentados criavam a maior confusão, perturbando fortemente os transportes ferroviários, as estradas e a fronteira com a Áustria.

A situação acalmou com a saída para a Alemanha de milhares de refugiados que deambulavam em Budapeste. Aqui, no sul da Hungria, ponto de entrada na fronteira de um espaço com livre circulação, é feita a identificação dos migrantes. A alternativa seria a imigração a salto, mas este novo centro tem os seus defeitos e será provisório: Simon não esconde a sua preocupação, pois as tendas não aguentam temperaturas abaixo dos dez graus, ou seja, durarão talvez duas ou três semanas.

O problema principal da crise, pelo menos do ponto de vista húngaro, está nos números: só este ano, entraram na Hungria 167 mil pessoas (dados oficiais de sábado). Muitos passaram sem controlo, antes de existir a controversa barreira definida como muro, mas que é na realidade uma vedação em arame farpado.

Nenhum refugiado está a ser rejeitado na fronteira; todos passam, mas esta é também a fronteira internacional de um espaço de livre circulação com 26 países, que tem as suas regras e onde se inclui Portugal. Os refugiados, que no fim-de-semana se puseram a caminho em Budapeste, foram entretanto colocados em autocarros e levados à fronteira austríaca, onde foram devidamente registados. Em coordenação com a Áustria e Alemanha, a Hungria tenta retirar a pressão da panela e as várias rebeliões estão a ser dominadas sem violência, como vi na estrada entre Roszke e Szeged, onde na sexta-feira a polícia apanhava pequenos grupos de viajantes, depois recolhidos por um autocarro.

A recente conclusão da vedação de arame farpado na fronteira com a Sérvia permite à polícia húngara controlar o fluxo de refugiados, uma torrente que engrossa, desaguando aqui através de vias mais fáceis de vigiar. Em Roszke, por exemplo, em vez de fazerem corta-mato por todo o lado, caminham por uma linha férrea onde na sexta-feira, em hora e meia, vi chegar mais de 100 pessoas. Ahmed e os dois amigos estavam então algures na Sérvia, um pouco atrás dos que vi nesse dia. Mas atrás destes todos vêm outras multidões. Não se sabe o seu número, ninguém imagina.