Centenas de paredes de edifícios abandonados, agora pintadas, contam a história de pessoas e animais, num alerta público para os maus tratos. O “Projeto Matilha” tem a pegada de Ricardo Romero, que alia a arte urbana a uma causa.

Um dos últimos trabalhos de Ricardo Romero foi pintado no Pataias Patas Parque, no concelho de Alcobaça, distrito de Leiria. O artista já projetou dois dos cães da fotógrafa alemã Elke Vogelsang, Scout e Loli, que foram resgatados e, mais uma vez, “chama a atenção para o problema dos animais abandonados”, refere a coordenadora do “Projecto Matilha” Catarina Dias.

Em Leiria, é impossível não reparar nos cães gigantes que estão pintados a grafito sempre que se viaja pelo Itinerário Complementar n.º 2 (IC2), no Alto do Vieiro, em ambos os sentidos. Numa das paredes envelhecidas está também o retrato da filha de Ricardo Romero.

“Todos os cães têm uma história e todos existem. Todas as histórias são verdadeiras. Infelizmente, temos um mundo muito rico de histórias para contar, seja por perderem muito pelo, por se babarem muito ou porque apareceu um bebé e já não podem coexistir os dois seres. Representamos sempre a realidade”, explica Catarina Dias.

Para Ricardo Romero, o “Projecto Matilha” “acaba por ser uma forma de estar na vida”. O artista começou por pintar desde cedo e “inconscientemente” percebeu que quase sempre pintava figuras de animais. “Como sempre, respeitei muito a causa animal, cheguei a uma determinada altura e vi-me na obrigação de encontrar um conceito para o trabalho que vinha a desenvolver nos últimos anos. E foi assim que surgiu o ‘Projecto Matilha’”, relatou.

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Quem utiliza a parede de escalada no parque radical de Leiria sobe e desce pela imagem do Bruno e do senhor Luís, o beato Salú. “Esta parede foi talvez das primeiras que comecei a pintar. Nesta altura, tinha ideia de contar às pessoas histórias reais do melhor amigo do homem, fosse ele animal racional ou irracional. Histórias felizes e histórias menos felizes”, revelou Ricardo Romero.

A figura do homem representa o senhor Luís, de Évora, cidade de onde Ricardo Romero é natural. “É uma pessoa que toda a gente conhece como ‘beato Salú’. É um filósofo da rua. É uma pessoa que pinta, que escreve, que tem um mundo muito próprio. É um amigo das pessoas de Évora, que tem valores como o companheirismo, amizade e lealdade”.

Já o Bruno é um boxer, que foi resgatado em Espinho, juntamente com o Gaspar (o cão de Romero). “Foi adotado por uma senhora, mas até aos cinco, seis anos foi um cão muito mal tratado.”

O objetivo “primordial” do “Projecto Matilha” é “chamar a atenção das pessoas para a causa animal e até mesmo para causas sociais e flagelos da sociedade”, porque, “ninguém passa indiferente a estas peças”, frisa Ricardo Romero, que não assina os desenhos. “Só isso, já obrigava as pessoas a terem curiosidade sobre o que esse estava a passar”.

Catarina Dias acrescenta que o “Projecto Matilha” “incide essencialmente nos direitos dos animais, mas também se vê um bocadinho o animal como uma representação do animal não humano mas também humano”.

O Loli, por exemplo, “é um animal que não tem um olho, é deficiente, certamente até foi essa a razão que o fez ser abandonado e é substituir a imagem do animal pela imagem de uma pessoa onde também ela sofre de maus-tratos e é negligenciada e excluída socialmente por ser portadora de uma deficiência, por ser de uma raça diferença”.

“A luta que queremos pelo animal acaba por ser a luta que também é feita pelos direitos humanos. Pelos animais vemos como é que se tratam os humanos, sobretudo, os com mais fragilidades, como os portadores de deficiência, crianças, idosos, oriundos de origens diferentes. Este novo projeto quer refletir sobre isso, mas também agir”.

Sortudo, um cão para ajudar crianças deficientes

Sortudo, o cão que se tornou personagem principal de um conto lançado pela Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral de Leiria, está no centro do “UIVO”, um projeto que pretende contribuir através da arte para a inclusão social. O projeto quer ainda alertar para questões relacionadas com os animais e cidadãos com necessidades especiais.

Os responsáveis pelo “Projecto Matilha” iniciaram neste ano letivo o “UIVO”, projeto que envolve crianças e jovens do Agrupamento de Escolas de Marrazes, idosos do lar/centro de dia da Amitei – Associação de Solidariedade Social de Marrazes e crianças e jovens portadores de deficiência da Associação Portuguesa de Paralisia Cerebral e da Cercilei, em Leiria, que pretende educar os mais novos para a “diferença” e para o “respeito para com o outro”.

“É o grande projeto do ‘Projecto Matilha’. É o projeto que desde o início estava pensado e que tivemos alguma dificuldade em pôr em prática, mas acreditamos que vai fazer muito bem à sociedade. Agora, finalmente, vão-se juntar todas as peças do puzzle e as pessoas vão perceber o que é o ‘Projecto Matilha’ e o que pretendemos”, explicou à agência Lusa Ricardo Romero, revelando que terá uma duração de “dois a três anos” e será implementado na União de Freguesias de Marrazes e Barosa.

O autor das pinturas de cães espalhadas pela cidade de Leiria acrescentou que o “UIVO” é um “complemento” do “Projecto Matilha” e que tem uma “enorme preocupação com a inclusão social”.

“A nossa principal preocupação é educar as próximas gerações, para que no futuro não existam os problemas que temos hoje. As leis em relação aos maus-tratos de animais mudam e o número de abandonos em Portugal continua a aumentar. Isto não faz sentido nenhum. Algo está errado”, sublinhou.

Catarina Dias, coordenadora do “Projecto Matilha”, explicou também que o projeto tem a sua vertente educacional. “Vamos utilizar contos e histórias já existentes. O mote vai ser o Sortudo da APPC, um cão diferente, que faz o paralelo entre os animais e os humanos diferentes. Vamos tentar explorar o tema com os miúdos. Não é dizer que está correto ou incorreto, mas mostrar a realidade para se poder alterar as atitudes. São crianças, mas precisam saber que há pessoas que fazem mal aos animais”, acrescentou.

O projeto, que começou a ser sonhado há cerca de um ano, será uma “intervenção concertada”, que terá uma preocupação especial com as crianças do pré-escolar e ensino básico. “Temos de lhes começar a colocar a sementinha para criar empatia e terem a obrigação de se sentirem responsáveis pelos outros. Nós vivemos num mundo redondo, estamos todos ligados”.

Ao longo do ano escolar será feita a reinterpretação e reinvenção do conto por parte de todos. “Já foi convidada uma pessoa para ajudar no arranjo musical, pois vamos fazer uma orquestra onde estarão desde as crianças com três anos aos mais idosos, mas utilizaremos instrumentos musicais adaptados. Aqui, vamos ter ajuda do CRID [Centro de Recursos para a Inclusão Digital da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais] e do Cinform [Centro de Integração e Formação Socioprofissional da Cercilei] para construir os instrumentos”.

A parte mais visível do projeto será a arte urbana, através dos grafitos e da “experimentação da lata”. “Vamos pô-los a fazer grafitos, desde os mais novos aos mais velhos” e irão ajudar a criar os “murais representativos da história do Sortudo”.

“Vamos tentar que cada mural esteja próximo do espaço físico de cada entidade envolvida no projeto e criar um roteiro, não só para as pessoas conhecerem as pinturas, como para perceberem a história e conhecerem também as próprias instituições”.

“Mais do que o produto final, interessa-nos todo o processo até lá chegar”, remata Catarina Dias.