“Fiquei a saber no meio de um engarrafamento em Karachi [no Paquistão] que Jeremy Corbyn queria usar na conferência [do Partido Trabalhista] uma passagem de um discurso que eu escrevi há alguns anos com o tema ‘ninguém tem de aceitar aquilo que lhes é dado’.”

Foi desta forma que Richard Heller, um escritor cuja especialização são os discursos e que trabalhou para um ministro-sombra do Labour entre 1981 e 1983, descreveu o momento em que soube que o recém-eleito líder dos trabalhistas britânicos escolheu usar as suas palavras no primeiro grande discurso — falou durante 59 minutos — perante os militantes da Labour. Foi já nos últimos minutos que Corbyn usou algumas das palavras de Heller quase na íntegra. Existe, porém, um eufemismo na maneira como Heller escolheu relatar o sucedido. É que, quando diz que escreveu aquelas passagens “há alguns anos”, na verdade tal aconteceu há mais de 30 anos.

Comecemos pelo início. Quando Neil Kinnock era líder dos trabalhistas (função que exerceu entre 1983 e 1992, sempre sem conseguir ser eleito para primeiro-ministro), Heller fez chegar à sua equipa um discurso onde a desigualdade era um dos temas principais. Um dos excertos dizia o seguinte:

Desde o começo da História, em todas as sociedades humanas há pessoas a quem é dado muito e a outras a quem é dado pouco ou mesmo nada. Algumas pessoas têm propriedade e poder, classe e capital, estatuto social e até santidade. Tudo isto é negado à multidão.”

Neil Kinnock e a sua equipa acharam por bem não usar este discurso. O mesmo se passou com os seguintes quatro líderes do Labour: John Smith, Tony Blair, Gordon Brown e Ed Miliband. Todos terão dito “não, obrigado” ao discurso de Heller — possivelmente por este se afastar do centro e por usar um estilo mais próximo da esquerda. Algo que, até há pouco tempo, era tido como um erro dentro do Partido Trabalhista.

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“A nota de suicídio mais longa da História”

Em 1983, ainda sob a liderança de Michael Foot, o Partido Trabalhista apresentou um manifesto eleitoral claramente à esquerda, onde defendia a abolição da Câmara dos Lordes, o desarmamento nuclear do Reino Unido e a saída da Comunidade Económica Europeia. Nas urnas, o resultado foi desastroso: a conservadora Margaret Thatcher foi reeleita com 42,4% e o Labour conseguiu apenas 27,6%, o pior resultado desde 1918. Por isso, na altura um deputado trabalhista deixou um título alternativo ao manifesto de 1983: “A nota de suicídio mais longa da História”.

Mas os tempos mudaram. Jeremy Corbyn foi eleito este mês para liderar o Partido Trabalhista com 59,5% ao prometer reconduzir o Labour para a esquerda, depois de anos no centro. E, por isso, o discurso que Heller escreveu nos anos 80 foi finalmente usado por um líder Trabalhista — sendo que, por já não ter grande esperança que o texto viesse a ser usado pelo Labour, Heller o publicou no seu site há quatro anos.

Algo que foi inicialmente negado pela equipa de Corbyn que, quando questionada pelo The Telegraph se o discurso do líder trabalhista tinha passagens do texto escrito por Heller, respondeu que os autores eram pessoas “muito mais inteligentes”. Pouco tempo depois, o porta-voz de Corbyn corrigiu essa informação e disse que “Heller foi consultado e permitiu que o seu discurso fosse utilizado uma vez que Jeremy Corbyn achou que o texto tinha perfeitamente aquilo que ele queria dizer ao povo britânico”.

Três décadas depois, Heller não consegue esconder a felicidade que sente por finalmente ter conseguido levar as suas palavras a um líder trabalhista. “Eu sempre tive muito orgulho naquela passagem, tanto pelo conteúdo como pelo ritmo, tanto que o ofereci a todos os líderes do Labour desde Neil Kinnock até agora e também a outros membros do partido”, disse ao The Telegraph.

E no The Guardian fez questão de declarar a sua disponibilidade para voltar a ajudar o Partido Trabalhista: “Eu discordo do Corbyn em muitas coisas, mas agora tenho de admirar a sua retórica. Nos assuntos em que eu concordar com ele, sobretudo no que diz respeito aos valores fundamentais do seu partido que também é o meu, ele é bem-vindo a chamar-me para [escrever] outras tiradas motivadoras e memoráveis”.

Recorde aqui o discurso de Corbyn em vídeo ou, se preferir, pode ler aqui o texto na íntegra.