É uma das questões tabu das legislativas: se houver, como dizem as sondagens, uma maioria de esquerda na AR, até que ponto o PS pode tentar juntar-se com o Bloco ou com o PCP para governar – com acordos pontuais na Assembleia ou mesmo levando uma coligação ao Presidente para formar Governo?

No sábado, a manchete do Expresso dizia que o cenário está em cima da mesa de António Costa: mesmo a coligação vencendo, o PS poderá liderar um governo – contando com o chumbo do programa da direita e com um acordo à esquerda para governar. Há um obstáculo central, que teria de ser ultrapassado para que o cenário fosse possível: até hoje nunca o PS fez governos à sua esquerda, nem sequer aprovou orçamentos com o apoio desses partidos (nem com Mário Soares, nem com António Guterres, nem com José Sócrates). As razões foram sempre programáticas: as opções da CDU e também do Bloco afastaram mais o PS da esquerda do que do PSD ou do CDS.

Mas isso foi no passado. E agora? É possível conciliar o programa do PS com os programas do PCP ou do Bloco? Fomos ver, ponto por ponto. E as diferenças são tão grandes que um eventual acordo pós-eleitoral implicaria grandes cedências de um lado ou do outro – sendo que ainda não á fácil perceber se os deputados do PS com só uma destas bancadas chegaria para fazer uma maioria. Vejamos então alguns dos pontos em que o fosso é maior:

União Europeia e euro

Um dos pontos estruturais onde as partes mais de afastam. Vejamos as ideias dos programas mais à esquerda:

  • PCP: “Intervenção com vista ao desmantelamento da União Económica e Monetária, e o estudo e a preparação para a libertação do País da submissão ao euro”
  • Bloco: Conferência europeia para o fim do Tratado Orçamental

Sobre isto, o PS de António Costa tem defendido a União Económica e Monetária sem reservas – apesar de defender que, no quadro da zona euro, as políticas devem mudar – no sentido de políticas mais expansionistas, de relançamento das economias do euro, e de maior “solidariedade”. No debate com Jerónimo de Sousa, Costa afastou-se totalmente da defesa que a CDU faz de uma preparação para a saída do euro. E com Catarina Martins disse que o Tratado Orçamental deve ser “revisto” (e não rasgado), mas que o PS o respeitará até conseguir “as alianças” na Europa que permitam essa revisão.

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Dívida pública

Na sequência do ponto anterior, PCP e Bloco têm propostas muito concretas para renegociar a dívida pública portuguesa. António Costa foi muito prudente face a este cenário desde que chegou ao Largo do Rato. Disse que seria desejável uma negociação, mas alertou para a necessidade de esta ser negociada com Bruxelas. Mais: deixou claro que não acredita que existam, hoje, condições para isso na Europa. Daí que tenha construído o seu programa económico sem contar com isso. E o que apresentam os partidos à esquerda? Propostas bem concretas:

  • PCP: “Renegociação da Dívida Pública com a redução do valor nominal dos montantes em 50% e redução do seu serviço em 75%”; “Não incide nenhum corte sobre a dívida na posse dos pequenos aforradores, detentores de certificados de aforro ou de tesouro, da segurança social, do sector público administrativo e empresarial do Estado e dos sectores cooperativo e mutualista.”
  • Bloco: “Abatimento de 60%, com juro de 1,5% e pagamento entre 2022 e 2030, incluindo credores públicos e privados, salvaguardando certificados do tesouro e de aforro, bem como o fundo da Segurança Social”.

Tendo em conta que os dois partidos colocam este ponto como central nos respetivos programas, a negociação com o PS prometeria ser particularmente difícil. Mas atenção: quando Catarina Martins desafiou Costa, no debate a dois, para um acordo pós-eleitoral, deixou de fora este ponto nas três condições que lhe apresentou (mas já lá vamos a essas).

Política Fiscal

Um tema em aberto para o PS: Costa promete mudanças nos escalões do IRS, para aliviar a classe média, mas só chegando ao Governo a concretiza (alegando não saber que margem tem). CDU e Bloco, por seu lado, são bem mais concretos nos respetivos programas. E propõem o seguinte:

  • PCP: “Criação de taxas de 60% e de 75% para rendimentos colectáveis superiores a 152 mil e a 500 mil euros anuais, respectivamente”; “imposto, às taxas de 0,5% e de 1%, sobre o património mobiliário (quotas, acções, poupanças, títulos e outros instrumentos financeiros), respectivamente acima de 100 mil e 1 milhão de euros”.
  • Bloco: “Fim das deduções [fiscais] nos rendimentos acima de 40 mil euros”; “Taxa de 0,5% sobre os activos não produtivos da banca e das empresas”.

Nenhuma das duas propostas tem, por princípio, acordo do PS, embora a margem de negociação – de um lado e de outro – possa ser maior neste ponto do que nos anteriores. A ala mais à esquerda dos socialistas tem manifestado simpatia por algumas medidas deste tipo.

Sector financeiro

Um dos pontos de conciliação impossível: entre o travão às privatizações de Costa e a renacionalização de empresas estratégicas do Bloco e CDU, a distância é enorme. Vejamos o que dizem os partidos mais à esquerda:

  • PCP: “O Estado, além da CGD, deve assumir participação na propriedade e responsabilidades de administração directa em bancos e outras instituições financeiras recapitalizados ou auxiliados com fundos públicos e adquirir progressivamente o controlo público da banca, por via de nacionalizações, aquisições, negociação adequada ou intervenção de emergência”.
  • Bloco: “Uma das medidas para alteração da estrutura da propriedade bancária deveria ser a conversão em propriedade estatal dos benefícios ou créditos fiscais contabilizáveis como fundos próprios dos bancos, um primeiro passo para a nacionalização dos mesmos”.

António Costa discutiu muito este ponto com Catarina Martins, do Bloco, no debate televisivo entre os dois. E perguntou à lider bloquista como se pagava essa nacionalização. A resposta foi que os dividendos das empresas chegariam. Costa não se convenceu, claro, mas Catarina Martins também não fez deste um ponto para as negociações futuras.

Mercado de trabalho

Neste capítulo, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa têm um ponto comum que nunca se ouviu no PS. É este:

  • PCP: “Redução do horário de trabalho para as 35 horas semanais, para todos os trabalhadores, [o que] coloca a necessidade de mais 440 mil trabalhadores para cumprir as mesmas horas de trabalho anuais”:
  • Bloco: “Redução do horário de trabalho para as 35 horas semanais nos setores público e privado”.

Costa já prometeu a redução do horário de trabalho no Estado para as 35 horas. Mas no setor privado nunca falou disso.

A este ponto deve juntar-se um outro: a proposta socialista de rever os mecanismos de despedimento são muito repudiadas à esquerda. E, essa sim, foi uma condição sine qua non da líder do Bloco para aceitar falar com Costa depois das eleições. Costa, refira-se, não respondeu (mas a ideia é muito defendida pelo coordenador do seu programa, Mário Centeno).

Taxas e propinas

Mais um ponto comum a estas duas esquerdas, aqui no Superior e no SNS:

  • PCP: “Supressão do pagamento de propinas” no Ensino Superior e “Revogação das taxas moderadoras que constituem um verdadeiro impedimento no acesso à saúde para muitos portugueses”.
  • Bloco: Fim das propinas no Ensino Superior e de todas as taxas moderadoras na Saúde.

O PS tem dito que baixará as taxas moderadoras para os níveis pré-troika (admitindo-se que mantendo as isenções entretanto atribuídas), mas não mais do que isso. E no Superior, há muito que o PS adotou as propinas como condição de financiamento do setor.

Segurança social

PCP e Bloco votaram contra a última revisão da Lei de Bases, elaborada por Vieira da Silva, cabeça de lista do PS em Santarém. E, agora, propõem a revisão de um dos pontos centrais dessa reforma – acrescentando o PCP alguns pontos extra:

  • PCP: “Manutenção do regime de idade da reforma abaixo dos 65 anos”; “acesso à reforma por velhice sem qualquer penalização e independentemente da idade da reforma para trabalhadores com carreiras contributivas de 40 e mais anos”; reformas antecipadas para “profissões de desgaste rápido e consideração do alargamento a novas profissões que o justifiquem”; “Revogação do factor de sustentabilidade”.
  • Bloco: “A idade legal da reforma aos 65 anos, como regra geral e a reforma aos 40 anos de descontos efectivos”.

Os socialistas dão a reforma de 2007 como exemplo de boa governação, sobretudo pela introdução do fator de sustentabilidade, que aumenta progressivamente a idade efetiva de reforma (sem penalização) consoante a esperança média de vida – entre outros fatores. E admite agora um problema de “sustentabilidade” da Segurança Social, o que implica que um ‘voltar atrás’ seria inegociável para o PS.

Para tornar mais difícil ainda uma negociação, Catarina Martins diz que só aceitará falar com António Costa se ele prescindir de um congelamento das pensões, previsto no seu cenário macroeconómico. Costa discutiu muito este ponto, mas a líder do Bloco pôs-lhe uma linha vermelha. Custará 1.400 milhões de euros durante a legislatura.

Relações internacionais

A velha divisão mantém-se nos mesmos termos:

  • PCP: “Dissolução da NATO e a oposição a qualquer bloco político-militar europeu”.
  • Bloco: “Saída da NATO e ação diplomática pela extinção deste e de todos os blocos militares”.

Os socialistas são pró-NATO desde Mário Soares, na sua fundação. E não abdicarão deste ponto. Vantagem para uma negociação: a saída nunca se faria a curto prazo. Chegaria para convencer as esquerdas mais à esquerda?

Outras propostas (umas para levar a sério, outras nem tanto)

Começando pelo PCP:

  • “Reanimação de importantes indústrias básicas (metalomecânicas e electromecânicas, metalurgias, químicas e petroquímicas de base, construção e reparação naval)”;
  • “Introdução da Alta Velocidade Ferroviária em Portugal (…), o Novo Aeroporto de Lisboa, cuja localização se posiciona na Península de Setúbal (…), a Terceira Travessia do Tejo, rodo-ferroviária, entre Chelas e Barreiro”;
  • “Reconstrução de um forte sector público, universal e de qualidade de comunicações como condição para o desenvolvimento e a soberania do País, com a recuperação do controlo público do sector (telecomunicações, comunicações, serviço postal e respectivas infraestruturas)”;
  • Promover uma política que “tenha por eixo central uma profunda alteração fundiária que concretize, nas actuais condições, uma reforma agrária nos campos do Sul – liquidando a propriedade de dimensão latifundiária -, que condicione por lei o acesso à terra pelo capital estrangeiro”.

E agora o Bloco:

  • “Renacionalizar as autoestradas originariamente construídas sem custos para o utiliza- dor (SCUT’s), isentando-as de portagens”;
  • “O capital público deve voltar a ser maioritário na Galp, na EDP e na REN”;
  • “Enquadramento legal dos clubes sociais de canábis, como acontece na Catalunha e no Uruguai, responsáveis pela produção e distribuição da canábis pelos seus associados e também pelo controlo da qualidade e pela promoção da informação”;
  • “Revisão integral e urgente de toda a sinalização rodoviária do país, horizontal e vertical, resolvendo o caos em espaço urbano e nos diferentes tipos de estradas”.

E o que mais? A TSU – do PS

Além de tudo o que está em cima, PCP e Bloco têm criticado em tom duro a proposta central do programa do PS: a dimunição da TSU para trabalhadores e empresas, que seria central para a devolução de rendimentos que os socialistas dizem ser essenciais para revitalizar a economia. Foi a terceira condição de Catarina Martins para negociar um acordo com o PS (para além do descongelamento de pensões e de Costa deixar cair o mecanismo conciliatório para despedimentos). Sem esta medida, o programa do PS deixa de ter motor. Poderá Costa deixá-la cair?