Houve uma “violação grosseira de um conjunto de regras legais, contratuais e de atuação conforme aos bons costumes de um normal e diligente Bom Chefe de Família”; Houve “uma total e incompreensível falta de profissionalismo (…) gritante”; “Outras razões explicarão este ‘investimento’ altamente lesivo”. A ação de responsabilidade civil que os acionistas da Pharol (a sucessora da PT SGPS) interpuseram na sexta-feira contra Henrique Granadeiro, Luís Pacheco de Melo e Amílcar Morais Pires, enquanto ex-administradores da Portugal Telecom, pelo investimento ruinoso de 897 milhões de euros em papel comercial da RioForte (um dos motivos para a derrocada do Grupo Espírito Santo) é dura. Melhor dizendo, duríssima contra os ex-gestores.

As empresas cotadas raramente responsabilizam ex-gestores por alegados atos dolosos de má gestão. Só por isso ação da Pharol, anunciada ao mercado ao início da noite da sexta-feira, seria sempre uma ação judicial relevante. Mas esta entrará também definitivamente para os anais da história económica do país quando tomamos consciência do valor da indemnização que os accionistas da Pharol reclamam aos três gestores no Tribunal do Comércio de Lisboa: um valor que pode ser superior a mil milhões de euros se tivermos em conta os juros de mora e se a PT não conseguir recuperar parte das perdas no âmbito do processo de insolvência da Rio Forte.

A Pharol, representada pelos advogados Miguel Esperança Pina, André Gomes e Gonçalo Madeira do escritório Cuatrecasas, não poupa por isso nas palavras no texto da ação de responsabilidade civil, a que o Observador teve acesso. Melhor: retrata o ex-chairman e ex-presidente executivo da PT Henrique Granadeiro, o diretor financeiro da empresa de telecomunicações Pacheco de Melo e o ex-administrador executivo do BES Morais Pires da pior forma.

“Investimento totalmente desenquadrado do objecto social da PT”, “uma imprudência intolerável, elementar e repreensível a todos os níveis” que traduz “uma total e incompreensível falta de profissionalismo (…) gritante” de gestores que alegadamente praticaram atos de má gestão com “dolo ou negligência grave”. “Outras razões explicarão este ‘investimento‘ altamente lesivo para a Autora [a PT SGPS]” que causaram uma destruição de valor bolsista da empresa entre o dia 1 de junho de 2014 e 18 de julho de 2014, quando as ações da holding da PT passaram de 2,6 euros para 1,7 euros – são alguns dos mimos com que Granadeiro, Pacheco de Melo e Morais Pires são brindados.

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Mas as frases mais demolidoras (e surpreendentes) acabam por ser estas:

[A decisão de investir na RioForte traduz uma] “violação grosseira de um conjunto de regras legais, contratuais e de atuação conforme aos bons costumes de um normal e diligente Bom Chefe de Família” (…) “imperou uma total e incompreensível falta de profissionalismo por parte dos réus, criticável a todos os níveis, ainda que os mesmos não fossem administradores eleitos para uma das sociedades abertas de maior capitalização bolsista do PSI 20 e remunerados de acordo com essa responsabilidade, que aceitaram assumir de gestores profissionais e especialmente habilitados para as funções”

Anatomia de um investimento falhado

Boa parte da prova recolhida pela Pharol tem por base a auditoria realizada o ano passado pela PricewaterhouseCoopers (PwC). Tal como os auditores tinham revelado, o Grupo PT (através das sociedades PT Finance, Bratel, PT Móveis e PT Portugal e da Fundação da operadora) começou a investir em papel comercial da Espírito Santo International (uma das holdings de controlo do Grupo Espírito Santo entretanto declarada insolvente) desde 2012 por “decisão dos réus Henrique Granadeiro e Pacheco de Melo”, lê-se na ação.

Assim, e até 31 de dezembro de 2013, a PT International Finance BV, uma sociedade de direito holandês que geria as aplicações financeiras do Grupo PT, tinha investido 550 milhões de euros em aplicações emitidas pela Espírito Santo International (ESI), enquanto que a PT SGPS tinha colocado 200 milhões nas mãos do GES. Total: 750 milhões de euros em papel comercial, que vencia entre 29 de janeiro e 20 de fevereiro de 2014.

Segundo os advogados da Pharol, Ricardo Salgado convocou uma reunião no dia 27 de janeiro de 2014, a dois dias do vencimento da aplicação de 200 milhões de euros da holding da PT na ESI, para informar Pacheco de Melo de que “já não seria possível renovar o papel comercial da ESI. Propôs, em alternativa, a subscrição de papel comercial da Rio Forte”. Salgado terá dito ainda ao então CFO da PT de que “a RioForte era a nova holding do Grupo e que tinha passado a reunir os ativos financeiros e não financeiros” – informação esta que terá sido também prestada posteriormente a Henrique Granadeiro.

No mesmo dia, Pacheco de Melo ficou a par das operações propostas pela RioForte através de Isabel Almeida, mulher da total confiança de Amílcar Morais Pires e então responsável pelas operações em mercados do BES. Na PT, o responsável pela mesma área, Carlos Cruz, recebeu por email a proposta da nova holding do GES. Desconhecendo o que teria sido falado no almoço entre Ricardo Salgado e Pacheco de Melo, e concentrado que estava na operação de aumento do capital social da Oi que seria subscrito em parte pela PT, Cruz recusou a proposta do BES, afirmando preferir a entidade ESI para continuar a investir no GES.

A RioForte volta a insistir no dia 31 com Carlos Cruz, manifestando a disponibilidade para explicar os pormenores da operação numa reunião a calendarizar. A Pharol acusa agora Henrique Granadeiro e Pacheco de Melo não terem sido diligentes em marcar essa reunião e de não terem solicitado informação pormenorizada sobre as operações propostas pela RioForte.

Pelo contrário, Granadeiro e Pacheco de Melo voltaram a falar com Ricardo Salgado a 3 de fevereiro de 2014, numa reunião em que esteve também presente Amílcar Morais Pires – que, recorde-se, assume neste processo a dupla função de CFO do BES com tutela do departamento financeiro do banco e com acesso a informação financeira do GES  e de administrador executivo da PT que aprovou estes investimentos. Nessa reunião, segundo a Pharol, “foi analisado e discutido o investimento na Rio Forte.” Para a nova dona da PT não há dúvida, assim, de que o investimento nas aplicações da RioForte “foi acordado entre Ricardo Salgado e os réus Henrique Granadeiro, Amílcar Pires e Luís Pacheco de Melo.”

Refira-se que desde dezembro de 2013 que o Banco de Portugal duvidava da saúde financeira do GES, tendo ordenado diversas ações preventivas para impedir que os problemas financeiros das holdings da família Espírito Santo afectassem o BES – facto que obviamente era do conhecimento de Ricardo Salgado e de Morais Pires. No momento em que Salgado fala com Henrique Granadeiro e Pacheco de Melo já saberia que o Banco de Portugal duvidava da solvência da ESI (e de outras sociedades da família Espírito Santo) mas estaria desesperado por ‘dinheiro fresco’ que permitisse continuar a manter em funcionamento do GES, conclui a Pharol.

Os advogados da Pharol vão mais longe e dizem mesmo que no momento em que a PT investe na RioForte esta empresa já estava “numa situação de falência técnica”, logo seria improvável o reembolso do investimento.

Henrique Granadeiro e Pacheco de Melo acabaram por ordenar, mesmo assim, um investimento total de 897 milhões de euros em papel comercial da RioForte entre 20 de fevereiro e 17 de abril de 2014.

A Pharol acusa Henrique Granadeiro e Pacheco de Melo de nunca terem ordenado “uma análise de risco antes da realização de cada investimento para as aplicações da Rio Forte”, “nem se preocuparam em analisar as aplicações subscritas”, de não terem determinado uma “consulta ao mercado, de modo a apurar-se qual a aplicação mais adequada para (…) o Grupo PT e de terem concentrato um montante muito elevado “numa entidade que não detinha comprovada reputação de mercado, nem estava sujeita a qualquer tipo de rating conhecido”. Por outro lado, acrescentam os advogados da Pharol, “a decisão de investir em aplicações da RioForte teve sempre por base documentação desactualizada sobre esta sociedade”, visto que, em alguns casos, “as fichas técnicas e os prospectos foram enviados para a Autora [a PT SGPS] numa data posterior à realização do investimento”.

Ou seja, a PT “apenas teve conhecimento das condições gerais aplicáveis ao investimento que havia realizado, depois de o ter efectivamente realizado!”, lê-se no texto da ação. E mesmo essa informação só foi enviada a 30 de junho de 2014 quando o jornal Expresso já tinha noticiado os investimentos que a PT tinha realizado na RioForte.

Uma das mais graves acusações contra Granadeiro e Pacheco de Melo prende-se, segundo a Pharol, com a falta de prudência desses dois gestores ao concentrarem os investimentos financeiros do Grupo PT no GES, violando a política de aplicações de curto prazo da operadora.

Em 31/05/2014, as aplicações nos Grupos GES e BES e realizadas pelo Grupo PT representavam 98% do total das aplicações de tesouraria e as aplicações em títulos do GES representavam 54% do total de aplicações. Ou seja, os réus Henrique Granadeiro e Luís Pacheco de Melo não diversificaram o investimento” do Grupo PT (…), “nunca reportaram à Comissão de Auditoria nem submeteram a parecer a realização dos investimentos nas aplicações emitidas pela RioForte, como também não pediram aprovação do Conselho de Administração [da PT SGPS] para a realização do investimento. Pelo contrário, omitiram informação sobre esses investimentos, quer nas contas de 2013 que elaboraram quer na informação que fizeram constar nos tableaux de bord que eram apreciados na Comissão Executiva [da PT SGPS]”

PT teve de envidar-se para investir no GES

A Pharol acusa ainda Henrique Granadeiro e Pacheco de Melo de terem obrigado a PT a financiar-se em “montantes que não seriam necessários se não tivesse sido realizado o investimento nas aplicações da Rio Forte”.

E aqui a operação de fusão com a Oi, aprovada em Assembleia-Geral a 27 de março de 2014, ganha um papel de destaque. Tal fusão implicava que a PT participasse no aumento de capital social da Oi “mediante a contribuição dos ativos que constituem a totalidade dos ativos operacionais detidos pelo Grupo Portugal Telecom e responsabilidades inerentes”. Isto é, na prática a Oi passou a deter o investimento de 897 milhões de euros que o grupo PT acabou por realizar no GES – e que naquela data desconhecia.

O problema, segundo a Pharol, é que a PT tinha informado a Oi, através do memorando de entendimento assinado em outubro de 2013, de que “não dispunha de quaisquer excedentes de tesouraria que carecessem de aplicação”. Por outro lado, a auditoria da PwC deixou claro que o grupo PT “endividou-se para poder investir nas aplicações ESI e Rio Forte” e “para poder fazer face a outros compromissos financeiros, o que não sucederia caso não tivesse investido em aplicações da Rio Forte”.

Segundo a Pharol, o grupo PT tinha obrigações financeiras em 2014 que totalizavam cerca de 1,7 mil milhões de euros:

  • Cerca de 1,5 mil milhões derivavam do acordo de fusão com a Oi, já que a PT tinha de despender a 5 de maio de 2014 essa quantia em obrigações convertiveis de subsidiárias da empresa brasileira
  • 87 milhões em dividendos
  • 100 milhões “relacionados com contingências resultantes de dívidas a bancos, a fornecedores, a funcionários e encargos com IRC”.

Para os advogados da dona da PT, a principal operadora nacional não teria de utilizar linhas de crédito junto do BES, Clube Deal [Bank of America Merrill Lynch] e Caixa Geral de Depósitos para satisfazer esses compromissos financeiros, “se os réus Henrique Granadeiro e Luís Pacheco de Melo não tivessem decidido continuar a financiar o GES no decurso do primeiro semestre de 2014”.

A PT foi obrigada entre abril e maio de 2014, segundo a Pharol, a aumentar em 400 milhões de euros a linha de crédito que possuía no BES, a contraír um novo financiamento com a Merrill Lynch no valor de 300 milhões de euros e a emitir papel comercial no valor de 155 milhões de euros através da Caixa Geral de Depósitos. Total da nova dívida: 855 milhões de euros.

Para a Pharol, estes factos demonstram que os investimentos na RioForte “não decorriam de uma necessidade de gerir excedentes de tesouraria, para mais em violação não só das regras internas, como do bom senso em termos de concentração e análise de risco”, acrescentando ainda que:

Não acorrendo a necessidades financeiras da Autora, visariam certamente suprir necessidades financeiras de outras entidades, em termos contrários aos interesses [da PT]”. Isto é, a Pharol acusa Henrique Granadeiro e Pacheco de Melo de terem acudido às necessidades financeiras do Grupo Espírito Santo.

A “total inação de Morais Pires”

Amílcar Morais Pires teve, como já recordamos, um duplo papel. Não só era o braço direito de Ricardo Salgado e responsável pelo financiamento do BES e e de parte do GES enquanto chief financial officer (CFO) do banco da família Espírito Santo, como era o administador executivo da PT (fazendo inclusivé parte do comité de acompanhamento da fusão da PT com a Oi).

Para a Pharol não existem dúvidas que Morais Pires agiu em “conflito de interesses”. Mais:

O réu Amílcar Pires sabia que a RioForte se encontrava num estado de falência técnica e nada fez para que a Autora não investisse em aplicações das referidas sociedades.”

É por isso que aos advogados da Pharol dedicam um capítulo da ação entregue no Tribunal de Comércio de Lisboa ao ex-número 2 do BES intitulado: “Da total inacção do réu Amílcar Pires”.

A Pharol começa por elencar os primeiros avisos do Banco de Portugal dirigidos ao GES/BES sobre os problemas financeiros do grupo e a informação incorreta que constava dos balanços das principais sociedades da família Espírito Santo, nomeadamente os avisos emitidos pelo supervisor da banca a 26 de Novembro de 2013 sobre “a capacidade da ESI honrar as suas dívidas”. Isto é, dois meses antes de Ricardo Salgado comunicar a Henrique Granadeiro e a Pacheco de Melo que o GES não poderia renovar o papel comercial da ESI, solicitando a substituição pela RioForte.

A dona da ex-PT afirma na ação que Morais Pires estava a par de todas as diligências que o Banco de Portugal tomou a partir de novembro de 2013, com destaque para o ring fencing que o supervisor tentou construir para proteger o BES, acrescentando que Pires era, além do mais, “o responsável máximo pela realização de operações de cash pooling de todas as entidades do Grupo GES, incluindo a RioForte. Logo, o réu Amílcar Pires tinha conhecimento da situação financeira do Grupo GES e, consequentemente, da ESI e da Rio Forte. E sabia que o Banco de Portugal tinha identificado uma situação patrimonial grave na ESI causada por um inusitado acréscimo do seu passivo financeiro. Na sua qualidade de administrador do BES, o réu Amílcar Pires sabia que o Banco de Portugal estava a impor especiais e draconianas restrições a essa instituição financeira, quanto à intermediação de instrumentos de dívida emitidos por entidades integrantes do Grupo Espírito Santo. Nessa medida, especiais deveres fiduciários de impedir o investimento em aplicações emitidas pela Rio Forte recaíam sobre o Réu Amílcar Pires, pelo menos desde 13/01/2014“, afirmam os advogados da Cuatrecasas subscritores da ação.

O que não aconteceu, apesar de, continua a Pharol, Amílcar Morais Pires ter participado nas “negociações realizadas, no primeiro trimestre de 2014, que visavam a subscrição das aplicações Rio Forte”.

Henrique Granadeiro, Pacheco de Melo e Amílcar Morais Pires têm agora cerca 30 dias para contestarem estas acusações da Pharol, indicarem as provas e testemunhas de defesa.

O Observador entrou em contato com o advogado de Amílcar Morais Pires para obter uma reacção à ação da Pharol mas até ao momento ainda não foi possível obter uma resposta. Também ainda não houve resposta aos contactos com Henrique Granadeiro e Luís Pacheco de Melo.