Um Governo em gestão fica com os poderes inibidos, mas a Assembleia da República não. Enquanto o Executivo fica obrigado a legislar “na estrita necessidade”, os deputados podem continuar a propor e a aprovar leis sem reservas (para lá das que tem habitualmente) podendo até originar situações insólitas. Exemplo: um Governo de gestão não pode, se quiser, aumentar o número de alunos por turma ou abolir um feriado, mas a maioria dos deputados pode aprovar uma lei para reduzir o número de alunos por turma ou outra para repor um feriado.

A nova Assembleia da República tomou posse na última sexta-feira, deixando automaticamente o anterior Governo em gestão; entretanto, Pedro Passos Coelho foi indigitado primeiro-ministro mas ainda está em processo de formação do novo Executivo – um Executivo que, tudo indica, não durará mais do que 15 dias. Até lá, e enquanto isso, está de pés e mãos atados. Se Passos for derrubado e o Presidente não quiser indigitar António Costa, o Governo PSD/CDS poderá conhecer novos dias em gestão.

No Parlamento, o trabalho, contudo, não é afetado. A única preocupação é a que já existe atualmente. “Tudo o que não tenha custo, a Assembleia da República pode impor contra a vontade do Governo, mas o que envolve custos tem obrigatoriamente de partir de iniciativa do Governo“, explica ao Observador o constitucionalista e professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Tiago Antunes.

Os deputados estão livres para mexer nas leis do trabalho, dos feriados, das 35 horas semanais de trabalho, passando pelas leis do aborto e a adoção por casais do mesmo sexo, por exemplo, mas o mesmo não acontece para as medidas que tenham impacto económico-financeiro imediato. É a chamada “norma travão” da Constituição.

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Segundo o artigo 167, número 2, relativo à iniciativa da lei, “os deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento”. Ou seja, qualquer medida de cariz económico, que envolva aumento da despesa ou diminuição da receita do Estado, tem de partir obrigatoriamente do Governo – em gestão ou não.

O constitucionalista Tiago Duarte reforça a ideia, explicando que “qualquer competência dos deputados sobre aumento de despesa fica condicionada pelo Orçamento que vigora este ano”, ou seja, a ser aprovada qualquer medida orçamental, só vale para o Orçamento do ano seguinte que terá ainda de ser sujeito à aprovação do Parlamento.

Mas sem uma maioria de deputados a suportar o Executivo no Parlamento, ou melhor, com uma maioria de deputados a fazer força em sentido contrário, cria-se uma situação de bloqueio, já que nem o Governo, mesmo podendo, quererá apresentar propostas condenadas à partida ou que correm o risco de ser alteradas no trabalho parlamentar. É o caso da proposta do Orçamento do Estado – que até podia ser apresentada por um Governo em gestão, mas não lhe convém, sob pena de a proposta ser desvirtuada e o Governo demitido ficar com um orçamento em mãos que nada tem a ver com aquilo que desenhou, explica ao Observador o constitucionalista Tiago Duarte.

Perante isto, “nem a esquerda consegue impor as suas medidas económicas relativas a este ano, porque não tem iniciativa legislativa, nem o Governo tem interesse em avançar com nenhuma medida com medo de ser desvirtuada”. Tudo o resto, contudo, pode ser manobrado a partir do Parlamento.

Reposição dos feriados e adoção por homossexuais: é para avançar

Se não podem avançar com medidas que envolvam aumentos de despesa ou diminuição de receita – onde se inclui baixa de impostos, reposição de cortes salariais, descongelamento de pensões, aumento do salário mínimo, etc. – é certo que os deputados da nova Assembleia recém-empossada estão na plenitude das suas funções e podem tomar iniciativa para legislar sobre todas as demais matéria – e conseguir que sejam aprovadas. Aqui sim, o Parlamento pode assumir mais “protagonismo” do que um Governo de gestão, reconhece o constitucionalista Tiago Antunes.

É o caso da reposição dos feriados eliminados, da alteração à lei da adoção de crianças por casais homossexuais ou da revogação das alterações à lei do aborto, aprovadas na reta final da legislatura anterior, quando a maioria estava nas mãos do PSD e CDS – tudo medidas que, agora, os partidos da esquerda e do centro-esquerda podem aprovar à revelia do Governo e dos partidos que apoiam o Governo. Na sexta-feira, de resto, o PS e o Bloco de Esquerda deram os primeiros passos nesse sentido, apresentando no Parlamento as suas primeiras iniciativas legislativas: os bloquistas querem acabar imediatamente com as “discriminações” quando à adoção por casais do mesmo sexo e revogar as alterações à lei da interrupção voluntária da gravidez; enquanto o PS, além da lei do aborto, dá também prioridade à reposição dos feriados civis eliminados, o 5 de outubro e o 1 de dezembro. Matérias que deverão ser agendadas já na conferência de líderes da próxima quarta-feira – e debatidas numa das próximas sessões plenárias.

Ou seja, com um Governo em gestão e uma Assembleia da República na plena posse das suas funções – e com uma maioria de esquerda, PS, PCP e BE vão poder travar qualquer iniciativa do Executivo (desde que não envolva custos orçamentais). É certo que na hora de legislar também o Presidente da República tem uma palavra a dizer, cabendo ao chefe de Estado promulgar, ou vetar, os diplomas que vêm do Parlamento – mas também é certo que, mesmo que Cavaco vete, os diplomas voltam para a Assembleia, que pode aprová-los novamente e em modo definitivo, bastando para isso uma maioria absoluta de votos. 

O que pode fazer um Governo de gestão?

O que a Constituição diz sobre as funções do Governo de gestão deixa espaço para interpretações: “Antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos”, lê-se no artigo 186.º sobre o início e cessação de funções do Executivo. Desde que toma posse, o Governo tem dez dias para sujeitar o seu programa de Governo à aprovação do Parlamento, se os deputados não se opuserem, o Governo passa a estar em pleno exercício das suas funções; mas se a maioria rejeitar o programa de governação, o Executivo cai imediatamente – voltando a ficar em gestão.

E segundo diz a Constituição, um Governo de gestão fica à partida limitado aos atos considerados urgentes para a governação, tendo de se manter numa linha de continuidade. Mas há uma um acórdão do Tribunal Constitucional, de 2002, que ajuda a perceber melhor o que pode ou não fazer um Governo demitido: é a necessidade urgente de tomar determinadas decisões e a justificação que o Governo dá para as tomar que permite a esse Governo governar. Ou seja, segundo os juízes, o Governo demitido não está limitado nos atos legislativos – pode atuar sempre desde que com base no critério da “estrita necessidade” e no caráter “inadiável” desses mesmos atos.

“Da definição constitucional do âmbito dos poderes de um Governo demitido não resulta nenhuma limitação em função da natureza dos atos admissíveis, frisando que o critério decisivo para o efeito é antes o da estrita necessidade da sua prática”, lê-se no acórdão. E continua, dizendo que “o interesse público pode reclamar a prática inadiável de atos legislativos” e que “limitar a competência do Governo demitido à prática de atos de gestão corrente, sabendo-se, além do mais, que a existência de governos com competência diminuída se pode arrastar no tempo”, é “altamente inconveniente”.