É um crime de “contornos inéditos”. É assim que a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa classifica a acusação contra um arguido de nacionalidade canadiana que o Ministério Público quer julgar pelo crime de “manipulação de mercado”.

O arguido Peter David Boone, segundo a acusação a que o Observador teve acesso, terá feito uma mais-valia da ordem dos 820 mil euros. E essa é também a indemnização exigida pelo Estado português neste processo.

O comunicado divulgado esta quinta-feira revela que o alvo da manipulação foram as obrigações do Tesouro português (dívida de longo prazo). E o objetivo era provocar a sua desvalorização em mercado secundário na altura em que rebentou a crise da dívida dos países periféricos do euro. 

O método usado foi a publicação de artigos e opiniões entre fevereiro e abril de 2010. Em maio, quando Grécia pede ajuda financeira, já os juros da dívida pública portuguesa estavam a disparar, proporcionado também ganhos para os investidores que apostaram na desvalorização dos títulos portugueses. 

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Doutorado em economia na Universidade de Harvard e investigador na London School of Economics, o arguido residente em Londres, era na altura também administrador numa consultora de investimentos e gestão de carteiras que prestava serviços a uma sociedade gestora de um hedge fund (fundo de investimento especulativo).

Usando do seu prestígio académico e profissional, o arguido publicou opiniões em blogues especializados, um dos quais associado a um jornal de referência mundial, e portanto com ampla divulgação internacional incluindo em Portugal. Segundo a acusação, as opiniões foram produzidas no blogue Economix, divulgado pelo New York Times, sem o autor revelar que era também um investidor com interesse específico na matéria, o que teria desvalorizado a sua credibilidade junto de outros investidores. 

Um dos artigos com maior impacto tinha como título, “O próximo problema global: Portugal” e foi publicado a 15 de abril de 2010, ilustrado com uma fotografia do então primeiro-ministro, José Sócrates. Esta opinião, co-assinada por Peter Boone e Simon Johnson, comparava Portugal à Grécia e defendia que os dois países estavam à “beira da bancarrota”, sobretudo por causa da dimensão da dívida pública e pelo facto desta ser quase toda financiada por investidores estrangeiros. Portugal viria a pedir ajuda internacional um ano depois. 

A investigação levada a cabo pelo DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) com o apoio da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), permitiu recolher provas que indiciaram o interesse do arguido na desvalorização da dívida pública portuguesa e na subida dos yields (rentabilidade dos investidores). Isto porque só a desvalorização lhe permitia recuperar a dívida com mais-valias (fechar uma posição curta), porque recomprada entretanto a um preço mais baixo, e potenciar os seus ganhos. 

Os artigos de opinião tiveram impacto nas yields da dívida pública portuguesa, influenciaram os investidores, até porque o arguido era um académico prestigiado, doutorado em economia pela universidade de Harvard e os artigos foram publicados em contexto de grande instabilidade financeira, de receio de contágio com a dívida grega, estando os mercados em situação de elevada suscetibilidade”, refere o comunicado.

Este terá sido um dos artigos que colocou Portugal no foco dos mercados internacionais, marcando o período de escalada na subida das taxas de juros exigidas pelos investidores para comprarem a dívida pública nacional.

Em 2010, vários governos da periferia do euro, incluindo o português, acusaram publicamente especuladores de atacarem as dívidas soberanas com a finalidade de obter ganhos. Chegaram mesmo a ser feitas denúncias às autoridades judiciais para que houvesse investigação de eventuais crimes de mercado.