E agora todos: “Dunas, são como divãs…”. Toda a gente a conhece: esta música dos GNR — que atuam este sábado, 31, no Coliseu de Lisboa para promover o seu disco novo, “Caixa Negra” — foi marcante para a carreira do grupo. E tornou-se um clássico definitivo. Orelhudo, com cheiro a maresia e fumo de fogueira na praia, beirada por uma guitarra tocada com um tímido coro a acompanhar. Para muitos, o hino da sua adolescência. A música que lhes ensinou a tocar guitarra e que foi a banda-sonora para os seus primeiros romances. Rui Reininho, vocalista dos GNR, ainda hoje não compreende o fenómeno. “É estranho, até porque é uma música assim um bocado fora e não tem muito a ver com o disco. O disco em termos musicais é mais para o experimental”.

O single, lançado em 1985, foi extraído do disco Os Homens Não Se Querem Bonitos. “As pessoas, na altura, tomaram conta da música e ainda hoje lhes pertence. Aliás, o meu herdeiro disse-me há uns anos: “Olha, pai, estamos a aprender a ‘Dunas’ na escola, com flautinhas’. A música faz parte do cancioneiro nacional e da (disciplina de) educação musical. São tantas as pessoas que me dizem que foi a primeira que aprenderam a tocar. Associam-na sempre a qualquer coisa. A eventos familiares, por exemplo. Não estou a dizer que seja música para funerais (risos), não é propriamente música para um funeral”.

A música todos conhecemos mas será que se recorda do videoclip? Ou melhor: dos videoclips. É que a verdade é que existem pelo menos três para esta música.

A versão bem-comportada

O original é de Edgar Pêra, também conhecido como realizador de filmes como “O Barão”, “Rio Turvo” ou “Virados do Avesso”. Aliás, este primeiro videoclip de “Dunas” foi, justamente, a sua estreia oficial.

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Rui Reininho e Edgar Pêra conheceram-se porque andaram juntos na Escola Superior de Teatro e Cinema entre 1981 e 1984. Tinham aulas no Conservatório Nacional de Lisboa e estavam juntos diariamente. “O Edgar Pêra sempre se deu com o pessoal das bandas. Ele era grande amigo do Pedro Ayres Magalhães e eles andavam por aí com o Paulo Borges, que era budista e fundou o PAN [partido Pessoas-Animais-Natureza, que acaba de eleger um deputado], e com o Cabrita Reis, artista plástico e pintor. Era a malta do Bairro Alto da altura”.

Quando acabou o curso em 1984, Edgar Pêra começou a filmar bandas como os Heróis do Mar, a Sétima Legião, os Xutos & Pontapés e, claro, os GNR. O seu vídeo, explica o realizador ao Observador, é um resultado desse trabalho: “Como não se encontravam muitas mais pessoas que filmassem, acabei por estabelecer um laço de cumplicidade muito grande, durante os anos 80, com essas bandas. No fundo, o que se pode dizer sobre o vídeo e sobre as filmagens é que correspondem a um reflexo de uma geração”.

Foi entre a praia da Trafaria, o Lisboa Clube Rio de Janeiro (no Bairro Alto, em Lisboa) e as linhas do comboio da zona onde mais tarde viria a ser o Parque das Nações que foram filmadas as cenas ficcionadas deste vídeo. Planos joviais, num salão de jogos ou na praia, sem ligação lógica entre eles. As outras são de um concerto em Moscavide, perto da casa do realizador na altura. Fica o aviso: não vale a pena tentar achar um fio condutor porque a ideia era ser mais que um videoclip, era ser um teaser para uma ficção mais extensa.

Nem Edgar Pêra nem Rui Reininho têm a certeza de que obra ficcional seriam provenientes estas filmagens, mas ambos sabem que se trata de uma espécie de curta-metragem com uma forte ligação musical. Dentro da incerteza, ambos parecem esclarecer a dúvida do outro. Pêra sabe que se trata de uma ficção que fez para a RTP; e Reininho acha que poderia ser parte de “Os Musicais do Sudoeste”, que por coincidência eram executados pelo realizador para o canal do Estado.

A produção não era luxuosa, desabafa Reininho. “Aquilo era feito com uns meios muitos artesanais, era o que havia. Arranjava-se ali umas câmaras, umas coisas. Era feito nesse espírito”. Assim, conseguia-se atingir dois objetivos: promovia-se o trabalho da banda e o trabalho do realizador.

O vídeo inclui também as cenas do tal concerto em Moscavide, algumas filmadas originalmente e depois filmadas novamente a serem tocadas numa televisão. É o experimentalismo no cruzamento de técnicas, a fusão da película com o vídeo. Estas filmagens incluem a performance dos GNR e vários momentos em redor. De salientar a aparição de um célebre amigo da banda, Zé Pedro dos Xutos & Pontapés, aos dois minutos e vinte segundos.

A versão espanhola

O segundo videoclip, lembra Rui Reininho, foi filmado em Espanha, “na estação de Atocha, onde houve aquele infeliz atentado”. Como é que surgiu o contacto para fazer isto? “Nós naquela altura começamos a tocar em Espanha e houve interesse da televisão espanhola em fazer outro vídeo. Foi filmado dentro de um daqueles comboios, um Talgo”. Um vídeo que será muito díficil de recuperar — neste teremos de usar a imaginação.

A versão escandalosa

O terceiro videoclip  é o mais polémico. Foi realizado pelo artista plástico e actor André Gomes e o próprio Rui Reininho descreve-o como “muito estranho”. Nesta versão também temos romance na praia, mas aqui a tensão sexual é entre um casal de dois jovens do sexo masculino. Tudo isto enquanto um Rui Reininho envelhecido os observa, ficando implícito o seu interesse carnal por esta cena escandalosa. Será que os GNR quiseram aproveitar a sua fama para provocar a sua audiência?

“Eles começaram a filmar como se fosse uma ficção e desapareceram. Foi feito à nossa revelia. Eu não sei se foi receio, talvez eles achassem que havia alguma manifestação homófoba da nossa parte”. Incrédulos com o final desta história, sentiram-se enganados. “Aquilo foi um bocadinho desonesto da parte deles, no sentido que foi montado e filmado sem sermos consultados. E depois eles, de repente, lançaram aquilo na televisão como se fosse uma bomba“. Quando foi divulgado, os GNR nem sequer o tinham chegado a ver. “É daquelas coisas que se podem fazer em Portugal. Uma pessoa diz: ‘Eu fiz um videoclip, tenho aqui um videoclip de uma banda’. E vai a um programa de televisão que simpaticamente o passa porque tem assunto”.

Esta versão alternativa do videoclip pode não ter sido uma provocação da banda, mas mesmo assim continua a chocar algumas pessoas. Basta consultar, por exemplo, os comentários do vídeo no YouTube para encontrar muita gente revoltada com o vídeo e com a existência de um romance homossexual na equação.

Rui Reininho reage: “As pessoas têm sempre dificuldade em lidar com a liberdade dos outros. Já nem digo com a sua própria”. E desvaloriza: “A mim não me afecta nada, mas gostava de ter tido mais partipação (nas decisões estéticas). Não sou um pedófilo, de roupão em casa e nostálgico dos tempos que já passaram (risos)”.

As dunas, tal como diz Reininho, “eram das coisas mais devassadas, havia na letra uma parte que falava de estarem poluídas e agora é das coisas mais protegidas”. Será que esta música ajudou tanto as dunas, que antes estavam sujas de alcatrão, como ajudou carreira dos GNR? O que é certo é que em 34 anos os GNR tornaram-se imprescindíveis. Por isso continuaremos a aprender a tocar guitarra com os quatro acordes desta música.