Quantas vezes deu por si a tentar ganhar coragem de se impor, de dizer um redondo “não” perante uma situação de desconforto? E quantas vezes pensou que não se impôs com receio de magoar a outra pessoa ou de receber uma resposta agressiva? É provável que isto aconteça com alguma frequência, já que o povo português é “do que mais dificuldade tem em dizer ‘não’ nas coisas importantes”.

Posto isto, fique a saber que o facto de não o dizer não faz de si uma pessoa pouco corajosa, antes insegura. Porque o medo inerente ao ato de nos impormos perante outros — sejam eles pais, filhos, amigos, namorados ou até colegas de trabalho — vem da falta de convicção. Mas até isso pode ser trabalhado. E, sim, o esforço vale a pena, não fosse o “não” o melhor que podemos dar aos outros, a definição da nossa própria personalidade e o segredo das relações bem-sucedidas.

As ideias são do psicólogo Joaquim Quintino Aires que, já habituado a presenças assíduas na televisão, continua a escrever livros. O mais recente, A Arte de Dizer Não! (Lua de Papel), já se encontra nas livrarias e quer ajudá-lo a descobrir o que realmente quer e a ser coerente com o que deseja. Isto porque o “’não’ é o que constrói uma relação ou um amor que queremos continuar. Não há outra forma de sermos felizes na vida, de nos sentirmos realizados e construirmos relações.”

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Fazendo uma leitura rápida do livro, facilmente se percebe que o ato de dizer “não” é considerado uma ferramenta de autoestima. Porquê?
É fundamental. É a grande ferramenta de autoestima e do bem-estar, do nosso funcionamento em sociedade. Porque é o “não” que nos torna gente. Nós somos personalidade e construir essa individualidade exige um “não”. Afirmarmos e verbalizarmos o “não” é o motor dessa construção — quando eu digo “não” estou a distanciar-me da opinião do outro, estou a ser diferente dele. O “não” é o instrumento que está no caminho de sermos gente, o que é a base da nossa autoestima. Mas ele é também fundamental para a promoção da qualidade de todos os tipos de relacionamento. É ao dizê-lo que vamos modelando o relacionamento com os nossos pais, avós, amigos, namorada ou namorado e até com o nosso chefe. Quando a minha mãe diz não, ela é capaz de o fazer porque gosta de mim. Quando eu digo não a um amigo, é porque eu quero aquele relacionamento. Quando já não temos muito interesse, seja em que relação for, começamos a deixar de dizer “não”. O “não” é uma luta pela relação.

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É sobre tudo difícil dizer “não” a quê?
Quando começamos a pensar nos motivos porque é difícil dizer “não”, surgem numa série de respostas: “Porque não queria magoar a outra pessoa”, “Porque tenho medo da agressividade que vem de lá”, “Porque podemos perder uma oportunidade”… Temos uma série de justificações que nos encaminham para uma dificuldade em dizer “não” por medo. Mas quando começamos a trabalhar o “não” em consulta, percebemos uma coisa que é comum a todas as pessoas que têm dificuldade em dizê-lo: não é o medo do que vai acontecer a seguir que as impede, mas sim o não ter a certeza de que aquele “não” é o correto. Será que pertence dizer “não” agora? Estas pessoas não têm certeza de si próprias e não têm certeza das suas próprias decisões. Não entramos na vida com essa reflexão já feita. Se os anos passam e ainda não fizemos essa reflexão, quando surge uma situação dessas a resposta não está presente para nós e, na dúvida, calamo-nos.

Mas, então, qual é o grande incentivo que podemos ganhar ao dizer “não”? O que está do outro lado da barricada?
Caso tenha dito “não”, a pessoa deu 20 passos na direção certa. É um trabalho de casa que já está feito. Era como quando éramos miúdos e fazíamos as aulas de matemática com lápis porque sabíamos que nos íamos enganar muitas vezes. Mas de cada vez que experimentávamos fazer o exercício, mesmo que corresse mal, estávamos a dar passos na compreensão da matemática. Aqui, ao dizermos o “não” podem surgir consequências pouco saborosas, mas estamos a dar passos neste mecanismo que nos vai ser tão útil. Claro que o ideal era termos feito isso quando a nossa vida tinha menos consequências — quando éramos crianças ou adolescentes. Mas se não fizemos isto antes, não faz mal: a beleza da vida é que temos até ao último segundo para treinar. Nunca é tarde para aprender a dizer “não”.

Imagine alguém que não aprende a dizer “não” na infância ou adolescência. Psicologicamente falando, que tipo de pessoa é esta? Quais são as consequências de não se dizer “não”?
Estamos a falar de um perfil que se caracteriza pela falta de assertividade, uma pessoa com muita angústia e baixa autoestima, mas também com maior propensão à depressão e uma maior probabilidade de não conseguir concretizar projetos com os quais sonhou — uma vezes porque não se sente segura (porque a segurança vem dos “nãos” que já dissemos), outras porque acaba por não se defender da vida e é antes levada por ela. Como muitas vezes isso também entra pelas relações a dentro, há uma grande probabilidade para a frustração, de vir a ser uma daquelas pessoas que dizem “Nunca tenho sorte nenhuma. Nunca tenho amizades ou namoros bons”. Não, o problema foi que não construiu essa possibilidade porque, quer queiramos quer não, é o “não” que constrói uma relação de amizade ou de amor. Muitas vezes queixamo-nos da sorte que não temos, mas também somos do povo que mais dificuldade tem em dizer “não” nas coisas importantes. Não temos culpa porque não desenvolvemos a consciência dos “nãos” certos, mas temos responsabilidade porque, não tendo essa consciência, podemos produzi-la.

Mas haverá certamente circunstâncias em que não se deve dizer não…
Sim, há muitas circunstâncias: quando já não gostamos daquele/a namorado/a e queremos acabar o namoro, quando já percebemos que aquele indivíduo não é um amigo verdadeiro e queremos distância ou quando percebemos que, afinal, os pais que temos não são grande coisa e queremos ficar mais longe. Nessas situações não vale a pena dizer não, é preferível calarmo-nos.

Então, não dizer “não” é o equivalente a desistir?
É quando temos a consciência de que queremos ir embora, que aquilo não presta. Não precisamos de dizer “não” ao nosso chefe ou ao nosso colega se queremos ir embora daquele trabalho. Sempre que não queremos o que está na nossa frente, não precisamos de dizer “não”. É conveniente não dizê-lo para não haver um desgaste maior. E vamos precisar dessa energia para outras coisas, até porque o “não” é para dizer coisas boas. Por isso é que digo que devemos dizer “não” com um sorriso. O “não” é o melhor que temos para oferecer aos outros.

Mas fica a dúvida: uma pessoa que não saiba dizer “não” é menos corajosa do que a outra que o diz e repete?
Não. É antes menos consciente de si própria. O dizer “não” não é uma questão de força ou de coragem, mas sim uma questão de confiança. As pessoas que vemos serem capazes de dizer o “não” dizem-no de uma forma tão segura que parece impossível contra-argumentar. E quem parece que está a pedir desculpa por dizer “não” tem uma posição corporal diferente, como se estivesse com medo do que vem a seguir… A sensação de medo vem da falta de convicção. Quando há convicção, não há medo nenhum. É aquela imagem de uma pessoa muito pequena a levantar o mundo e uma muito grande que não levanta um balde.

O “não” entre pais e filhos

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Yuri Arcurs/Getty Images

Como é que o não deve ser utilizado entre pais e filhos?
Com a convicção de que aquela relação é assimétrica, de que o pai e o filho não estão em igualdade de circunstâncias e que o filho ainda não tem o cérebro acabado de construir para orientar a própria vida — o cérebro de um humano fica minimamente pronto, se tudo for rápido e correr bem, lá para os 18/ 19 anos. Mais, a responsabilidade da felicidade e da capacidade de o filho se realizar como pessoa, não só naquele tempo mas também quando for adulto, é do pai ou da mãe. Sendo assim, as decisões do “sim” e do “não” são tomadas pelos pais sem questionar qual é a opinião do filho e sem se inibirem face à reação deste.

Segundo o livro, muitos pais consideram que os filhos têm muita personalidade quando, em crianças, gritam e fazem birras intensas. Mas, afinal, não é bem assim…
Vou dizer que 99% dos pais que trazem o filho à consulta porque este faz muitas birras dizem que ele ou ela tem uma personalidade muito forte. Mas não tem uma personalidade forte, antes uma biologia fantástica, resultado de milhões de anos de evolução. Personalidade é o contrário de biologia. Biologia é o que nos faz igual a todos e a personalidade é o que permite diferenciar-nos. Nós vamos anulando alguns aspetos da nossa biologia e é isso que caracteriza a nossa personalidade. Se uma criança faz birra, não aguenta a contrariedade, é uma criança com pouca personalidade. Pouca, no sentido em que ainda é imatura. Mas é claro que há idades em que isso é normal.

A partir de que idade é que as birras e os gritos já não fazem parte?
Não fazem parte quando a criança está já a terminar a segunda infância (dos 3 aos 5 anos). Se nessa altura ainda faz isso, é porque está muito atrasada. Isso significa que, depois, não vai conseguir focar-se, não vai conseguir aproveitar os recreios para interagir com as outras crianças e não vai conseguir aceitar a sugestão de um professor.

Quando é que uma criança começa a compreender o “não” dos pais?
A partir dos três anos a criança compreende a palavra “não”. Até aí, o pai e a mãe têm de usar a cara feia, aquela cara que mete medo e que demonstra o desagrado sem som. A partir dos três anos deve-se começar a cruzar as duas: a cara com a palavra “não”, sem explicação e sem mais texto. Isto para que a criança faça uma conexão no cérebro dela entre o rosto que já conhece e que a assusta e o som da palavra que está ouvir. Lá mais para a frente, a palavra “não” vai ser suficiente por si só. Antes dos três anos não adianta dizer a palavra porque o cérebro não está pronto para isso; não introduzir o “não” muito depois dos três anos implica muito trabalho no futuro.

E até quando é que um pai pode ou deve dizer “não” a um filho?
Enquanto pagar contas do filho. Enquanto paga as contas do filho, decide pelo filho. Assim que o filho paga as contas dele torna-se verdadeiramente cidadão, não no sentido da lei, mas no sentido psicossocial.

Mas depois de tanto tempo a dizer não ao filho, deduzo que esta seja uma adaptação complicada para os pais.
Sem dúvida. Para ajudar essa transformação é esperado que na segunda parte da adolescência, 16/17 anos, o filho ensaie alguns “nãos” ao pai. O pai pode ouvi-los com a alegria dentro de si, porque o filho está a crescer, mas cá fora deve continuar a mostrar aquela dureza — “Essa é a tua opinião, mas quem decide sou eu”. Um filho que nesta fase da adolescência não comece a argumentar significa que, muito provavelmente, está imaturo em termos de competências relacionais; nessas circunstâncias, pode vir fazer muitas coisas de que não gosta e isso aumenta a probabilidade de, depois de sair de casa, deixar de visitar os pais.

Considerando esse perfil, do filho que não ensaia “nãos” na altura certa, quais as consequências a longo prazo?
Vai ser um adulto muito mais inseguro. É mais candidato a bullying. É mais candidato a vítima de violência doméstica.

Na adolescência entramos no jogo do permite e não permite. Que conselho daria aos leitores que têm filhos que vão agora entrar na chamada idade do armário?
A adolescência prepara o futuro adulto. Há aqui um período, sobretudo na segunda parte da adolescência (15/16 anos), em que é necessário que os pais aceitem os ensaios de adulto dos filhos, isto é, devem ficar felizes por dentro com algumas patifarias que os filhos fazem — desde que estas não os ponham em risco. Agora vem a parte difícil deste jogo: por dentro ficam felizes, porque não é para o filho ser igual ao pai (caso contrário, o filho ainda não existe e é apenas uma prolongação do pai), mas continuam a dizer os “não”.

O “não” entre amigos e casais

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No livro lê-se a seguinte frase: “Sem o ‘não’ não há amizade.” Como assim?
A amizade é uma coisa muito forte, um vínculo que dá continuidade ao vínculo emocional de afeto dos pais. Veja-se o estatuto do amigo. Mais, a relação de amizade é o que prepara o vínculo de amor: quem nunca viveu amizades a sério, nunca vai conseguir amar. Se a amizade é uma coisa tão importante, então vamos lá olhar para quem é aquele ou aquela a quem atribuímos esse estatuto. É um vínculo tão profundo a nível emocional que é necessário que ambos saibam quem são e isso apenas acontece quando se diz “não”. Quando eu digo “não” ao meu amigo, é uma coisa boa, não é uma coisa má: estou-me a revelar e eu preciso de me revelar para que ele possa apreciar e decidir se se identifica comigo ou não. Às vezes chocam-se comigo quando respondo que a outra pessoa não é minha amiga porque ainda não tivemos uma discussão. Este é o meu critério: se o vínculo de amizade resistir a uma grande discussão, é porque de facto temos o sentimento de amizade.

Pressupondo que numa amizade alguém não diz “não”, quais as consequências para quem não o diz e para quem não o ouve?
Se há pouco dizíamos que o “não” é o que me permite revelar a um amigo e que este tem o direito de apreciar se se identifica comigo ou não, então, ao não dizer “não” estou a mentir-lhe porque estou a permitir que ele construa uma imagem falsa sobre mim. E, naturalmente, eu tenho um corpo que expressa emoções onde se inclui a raiva, a angústia e mesmo o ódio. Então, além de estar a mentir à outra pessoa, estou a acumular coisas negativas que um dia podem explodir. Eu posso ter a coragem de explodir com ele ou posso não ter essa coragem e falar mal dele a um terceiro. Como é que o outro — que não está a ver a minha cabeça, que não sabe dos “nãos” que queria ter dito e que até achou que sempre fui honesto com ele — se vai sentir quando souber que eu fui falar mal dele a uma terceira pessoa? Deve doer muito. Ao não revelar-me, o suposto amigo vai agir comigo como se eu fosse outra pessoa e vai ter atitudes comigo de quem não me conhece. O “não” é o que constrói uma relação ou um amor que queremos continuar. Não há outra forma de sermos felizes na vida, de nos sentirmos realizados e de construirmos relações.

Gostava que comentasse esta frase: “Todas as vezes que optou pelo silêncio deixou de expressar a sua personalidade e contribuiu para terminar um casamento que, na sua imaginação, seria para toda a vida.”
O que as pessoas não sabem é que não dizer “não” é uma forma de arruinar a relação em que estão. Estou absolutamente convicto disso. Não se diz “não” porque há um medo enorme de perder aquela pessoa, mas o que se observa é que, perante isso, o outro desinteressa-se e afasta-se. Quando não dizemos “não” também nos tornamos desinteressantes. Dizer sim a tudo é sempre a pior estratégia.

O “não” entre colegas de trabalho

circa 1938: A close-up of a pair of hands clasped in friendship. (Photo by Fox Photos/Getty Images)

Fox Photos/Getty Images

Aqui as regras são outras porque pode haver um risco maior, sobretudo tendo em conta o ordenado no final do mês. Em que circunstâncias é que podemos dizer “não”?
É tudo igual, como em todas as partes da vida. Quando desconhecemos, o nosso comportamento é orientado pelo medo; quando conhecemos, o nosso comportamento é orientado pela segurança. Se eu me informei sobre a instituição onde trabalho — qual é o seu objetivo, legislação e cultura –, é muito fácil para mim, em relação àquela ordem ou àquele pedido, dizer um “não” que cabe dentro da cultura da organização. É sempre preciso conhecer os “nãos” que pertencem a cada situação.

Imaginando um leitor que, no final desta entrevista, quer estrear-se a dizer “não”, há alguma dica para que a estreia seja mais fácil?
Ele que pense no bom que vai ser depois e não nas sensações que está a ter naquele momento, que são horríveis. Que visualize rapidamente como vai ser depois, isto é, que se concentre no “não” que tem de dizer e nos sentimentos que vai experimentar depois de o ter dito, sem olhar para as emoções e para os sentimentos que vai ter naquela altura. O sonho de quem não consegue dizer não é o dia em que o vai dizer.