Um “drone”. Que maior indignidade pode haver para um agente secreto do que ser reformado e substituído por um “drone”? É exactamente o que espera 007 em “Spectre”, o 24º filme da série James Bond, realizado de novo por Sam Mendes e com Daniel Craig no papel principal pela quarta vez. Passa-se que os serviços secretos britânicos estão a ser reestruturados e modernizados. E em nome da contenção orçamental e da obsessão securitária global, o governo fez uma parceria técnico-financeira com o sector privado e deu plenos poderes a um jovem e dinâmico burocrata para a fusão do MI 5 e do MI 6, a instalação de um avançado sistema de vigilância e recolha de dados partilhados por nove países, a aposta nas novas tecnologias militares e a extinção pura e simples do programa dos agentes secretos “00”, considerado ineficaz e obsoleto.

[Veja o “trailer” de “Spectre”]

Ou seja: além dos seus fantasmas familiares e da mais antiga e poderosa organização internacional do crime do cânone bondiano, de nome ectoplásmico, James Bond tem também que enfrentar, em “Spectre”, a estulta e implacável máquina da administração pública.  Seria demais para um vulgar agente secreto, mas 007 não é um agente secreto qualquer, e vai à luta com toda a sua garra, determinação e experiência, descobrindo, como diz o outro, que “isto está tudo ligado”, tipo rede social da malfeitoria. A coisa complica-se tanto que até M, Q e Moneypenny têm que ir para o terreno dar uma ajuda a Bond.

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[Ouça a canção-tema de “Spectre”]

Para aqueles que gostam de uma opinião logo no pontapé de saída de uma crítica, diga-se que “Spectre” não consegue ser tão bom como o Bond anterior, “007-Skyfall”, mas é calmamente melhor do que o penoso “007-Quantum of Solace”, e tão bom como “007-Casino Royale”. Aliás, estes quatro filmes com Daniel Craig na pele de 007 acabam por formar um todo coerente e homogéneo, pelo que convém ter visto os três anteriores (embora não seja obrigatório) para melhor saborear “Spectre”, onde Sam Mendes e os argumentistas John Logan, Neal Purvis, Robert Wade e Jez Butterworth matam dois coelhos de uma só cajadada, e juntam o melhor dos dois mundos de James Bond, o clássico e o contemporâneo.

[Veja a entrevista com Sam Mendes]

https://youtu.be/0UqIR4iPxIg

A montante, James Bond exorcisa definitivamente os seus fantasmas familiares (e não era sem tempo); e a jusante tem o confronto final com a tenebrosa SPECTRE, tutelada pelo seu inimigo histórico, Stavro Blofeld (interpretado com suavidade sinistra por Christoph Waltz, parte super-vilão, parte mega-homem de negócios), cujos membros se identificam pelo uso de um “anel do mal” com o desenho de um polvo. A SPECTRE soube adaptar-se aos tempos. Diversificou as suas actividades para áreas como a saúde e as tecnologias da informação e vigilância, e tem reuniões de administração em antigos e sumptuosos palácios romanos onde os membros que falham são liquidados e substituídos “in loco”, com a aprovação do CEO. A SPECTRE poderá ser maléfica, mas é imbatível em termos de gestão de quadros. 

[Veja a entrevista com Daniel Craig]

Além de reiterar de que os filmes da série James Bond continuam a ter as sequências de acção mais complexas, arriscadamente espectaculares e visualmente jubilatórias do mercado, como se pode ver pela abertura de “Spectre”, passada na Cidade do México e envolvendo a demolição de um prédio a tiro, um plano-sequência de fazer inveja a Orson Welles ou Brian De Palma e uma cena de luta dentro de um helicóptero que faz loopings sobre uma praça pejada de pessoas que festejam o Dia dos Mortos, o filme volta a dar mais espaço a elementos clássicos do universo bondiano que andavam arredados dos anteriores. É o caso do sentido de humor, nomeadamente em situações pré-sexuais (Monica Bellucci: “Se não se vai já embora, morremos juntos”. Daniel Craig, todo encostadinho a ela: “Há maneiras muito piores de se morrer.”) dos gadgets tradicionais concebidos por Q (um Aston Martin equipado com metralhadora, lança-chamas e assento ejector, relógio de pulso explosivo) e das situações de perigo como manda a velha escola (salvamento contra-relógio da “Bond girl”, atadinha que nem um presunto pelo vilão e escondida algures num edifício decorado a explosivos). 

[Veja a entrevista com Christoph Waltz]

A estes, juntam-se os prazeres tradicionais, em cenários cosmopolitas, de uma boa perseguição de automóveis (Aston Martin contra Jaguar C-X75 nas ruas apertadas de Roma), de uma cena de pugilato num transporte público (um comboio no deserto de Marrocos) ou de um duelo avião/jipes nas neves austríacas. Os filmes da série continuam a encenar ao vivo e com “duplos” as sequências de acção, e a secundarizar o recurso aos efeitos digitais, pelo que não é de admirar que além de ser o mais caro de toda a história dos 007, “Spectre” seja também, ao que consta, um dos filmes mais dispendiosos de sempre, com um orçamento a rondar os 350 milhões de dólares, tudo para mais, nada para menos.

[Veja os carros de “Spectre”]

Aos 51 anos, Monica Bellucci é a “Bond girl” mais velha de sempre, e é lamentável que a sua participação em “Spectre” seja tão rápida. Se há duas reclamações que eu tenho a fazer sobre o filme, é que tem Monica Bellucci a menos e duração a mais (e uma canção-tema indiferente, e uns pontos mortos aqui e ali). Léa Seydoux fica muito bem de vestido de noite e passa no exame de “Bond girl” principal, não se limitando a fazer figuração de beleza passiva e vulnerável. (Mas lá que trocava duas Léa Seydoux de 25 por uma Monica Bellucci de 50, lá isso trocava). Daniel Craig terá muitos anticorpos entre muitos bondianos de carteirinha, mas é difícil negar que ele cabe como ervilha numa vagem neste James Bond para os nossos tempos, globalizados, pessimistas e cada vez mais inquietantes.

[Veja as mulheres de “Spectre”]

Craig, que também co-produz o filme, disse que não interpretaria 007 uma quinta vez, e o final de SPECTRE tem todo o ar de uma despedida da personagem, e do fim de um ciclo para a série. Mas, entretanto, o actor já se desdisse por meias tintas, e parece que se terá comprometido para o Bond número 25. Citando o 007 de Sean Connery: “Nunca mais digas nunca”. E esqueçam os “drones”.