Durante as grandes tempestades da Alemanha medieval, o pouco que havia a fazer por uma casa de família pobre era pôr a mulher à porta, de rabo ao ar. Era o equivalente, acreditavam, a mostrar alhos a vampiros: o diabo fugia. É que apesar do poder da transmutação, esta é a única parte do corpo humano que ele, teoricamente, não consegue imitar. E numa casa com um rabo à porta, o diabo não entra.

O rabo é uma dádiva pouco comum entre os animais da criação e que está a ser cada vez mais festejada (não será provavelmente esta exclusividade a principal razão). O dos babuínos, rosado e pelado, não conta — não é mais do que um calo para se poderem sentar. O mais surpreendente exemplo será o do gado belga azul, bois com músculos tão desenvolvidos como se passassem o dia a tomar esteroides. E mesmo assim, não se pode chamar aos seus músculos traseiros “rabo”, pelo menos na função que o nosso, humano, cumpre — ter um efeito propulsor no movimento, através dos músculos das nádegas, e permitir o equilíbrio para que nos possamos manter de pé, por exemplo.

Mas há que ultrapassar esta visão funcionalista, que terá pouco que ver com a prestação de Nicki Minaj em “Anaconda” ou com a edição da revista Paper em que Kim Kardashian serve champanhe no próprio rabo, num truque arriscado de equilibrismo — uma recriação da fotografia com o mesmo conceito feita pelo mesmo fotógrafo, Jean-Paul Goode, em 1976.

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O traseiro de Beyoncé — que dá nas vistas desde o início da sua carreira — não deve estar em vídeos como o de “Partition” para dizer “sou essencial para que esta menina consiga andar” e Meghan Trainor, quando canta “I’m bringing booty back, Go ahead and tell them skinny bitches“, não está a orar a nenhum Deus da fertilidade. Como diria Queen B ainda na era Destiny’s Child: este tempo é bootylicious.

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“Tenho 99 problemas mas o meu rabo não é um deles”, garante Beyoncé numa versão própria de uma música do marido, Jay Z.

Uma História do rabo

O rabo tem vindo a revelar-se com menos vergonha desde os anos 80 e hoje vive o seu momento. Até mais, talvez, do que os decotes. Antes disto já o homem pré-histórico apreciava o rabo feminino por uma questão de seleção natural — as ancas largas e o rabo grande e redondo são indicativos da presença de juventude, estrogénio e gordura suficiente para gerar um filho. Que o diga a estatueta do paleolítico, encontrada na Áustria e batizada Vénus de Willendorf, associada à fertilidade.

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A Vénus de Willendorf. Fonte: Wikipédia

Um estudo da Universidade Bilkent, na Turquia, concluiu que o que é atrativo para os homens é, na verdade, a curvatura cervical que dá lugar ao rabo e é, no caso, da mulher, mais pronunciada. A explicação dada diz que é este traço que permite à mulher mudar o seu centro de gravidade na gestação de uma criança, tendo assim uma gravidez com menos complicações — a natureza, outra vez.

A mesma razão da fertilidade foi já repetida para a atração pelo peito feminino, que é um traço erótico verdadeiramente antiquado e consensual — não esqueçamos a alegoria da República, para não falar de umas quantas virgens Marias que desnudam um seio como símbolo de maternidade.

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Bettie Page, um belo exemplo da curvatura cervical pronunciada. © Taschen / The Big Butt Book

Os padrões euro-americanos de beleza e a moda feminina não privilegiam a face traseira há tanto tempo como o fazem com os seios — que alguns pigófilos (admiradores de rabos) dizem ser uma imitação frontal do rabo. Mesmo no sexo heterossexual, o rabo parece ter qualquer fator de proibitivo, que nos aproxima dos animais. Os primeiros humanos praticariam o coito com o homem por trás da mulher, e a mudança de posições estará associada ao desenvolvimento da capacidade de amar, e ao desejo de contacto visual.

No século XVI começam a usar-se armações que evidenciam o rabo e que se mantêm até ao século XIX. Também os corpetes, ao reduzirem a cintura, evidenciavam as ancas e o rabo, criando uma silhueta de ampulheta. Mas com as flappers dos anos 20, o rabo só se adivinha, não está marcado nos vestidos que libertam o corpo. O rabo voluptuoso era visto como inestético, se não mesmo bizarro. No final do século XVIII, Saartjie Baartman foi trazida de África para Londres pelos colonialistas britânicos e exibida como aberração por ter um rabo muito grande — nunca antes visto na Europa.

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Uma senhora de Renoir que poderia equilibrar um copo tal como Kim Kardashian

Uma das explicações que se podem avançar para o rabo ter passado a maior parte do século XX quase despercebido, é o facto do padrão de beleza ocidental se ter mantido essencialmente restrito à mulher branca, que não é geneticamente propensa a glúteos desenvolvidos ou à forte acumulação de gordura nessa zona.

Mesmo na pornografia, apesar das gravuras cheias de palmadas eróticas da Inglaterra vitoriana, o foco no rabo é tardio. Dian Hanson, autor do livro The Big Butt Book, da Taschen, passou semanas a escavar arquivos de revistas pornográficas dos anos 60 para encontrar apenas uma mão cheia de imagens.

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A capa do livro da Taschen só dedicado aos rabos. Aviso: a parte preta levanta-se.

No princípio era… Jennifer Lopez

O fascínio pelo rabo confunde-se com a história da afirmação das comunidades afro-americanas e latino-americanas. 1997 marcará provavelmente o ano em que Jennifer Lopez nos mostrou o caminho, quando interpretou no filme Selena a cantora latina com o mesmo nome. Com os seus movimentos de anca e sensualidade sul-americana a ser celebrada, daí em diante só valia a pena ter um rabo para o mostrar. No ano passado, a cantora e atriz tentou lembrar-nos que foi o caso-charneira com a música que gravou com Iggy Azalea. Chamava-se simplesmente Booty – palavra difícil de traduzir em português mas que é qualquer coisa entre o diminutivo “rabiosque” e a sexualizada “bunda”. Mas depois da consagração sem vergonha do rabo, J. Lo deixou de ter o monopólio.

Com o hip hop — um movimento nascido no underground dos bairros das comunidades negras – a crescer, em meados dos anos 80, há uma estética nova a afirmar-se a todos os níveis (sendo esta época também o momento de uma aceitação mais generalizada da pornografia).

Hoje, as mulheres americanas com ascendência africana dividem-se entre o orgulho num rabo grande bem desenhado e a vontade de afastar o estereótipo. O twerk — um estilo de dança em que se faz um uso sábio do rabo ao ritmo da música — será o melhor exemplo. Uma ciência que criou polémica (por ser racial) e levantou a discussão: será que só as afrodescendentes o conseguem fazer como deve ser?

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A Anaconda de Nicki Minaj.

A comunidade negra criticou o vídeo de Taylor Swift, “Shake It Off”, pelas cenas que mostravam twerk. Num comentário para o Huffington Post, a humorista Amanda Seales criticou a cantora por estar a calcar o estereótipo dos rabos grandes como propriedade caricatural das mulheres afro-americanas e logo a seguir por não ter rabo: “She’s like: ‘i’m in my black costume now, so let me try and shake my not-ass-at-all’.”

Sendo o rabo dançante ou não uma propriedade africana, não deixa de ser curioso (até por uma questão de representatividade) que num vídeo recente de Justin Bieber só haja mulheres a dançar, mas que nenhuma pareça ser negra.

A dança e o exercício não negligenciam hoje os glúteos — se é que não vivem deles. Enquanto no século XIX Félix Vallotton pintou o grande plano de um rabo em movimento mostrando a realidade crua e dura, ou no século XVII um rabo era, para a pintura, bonito em toda a sua imperfeição ­— na celulite e nas estrias, e até numa escoliose que se diagnostica nas “Três Graças” de Rubens —, no século XX o que queremos dos rabos é que sejam tão redondos, forte e lisos quanto possível. Não há ginásio que não tenha hoje as aulas de exercícios para os glúteos sempre cheias: do bumbum Brasil ao Made in Brasil, passando pela Zumba.

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“Étude de Fesses”, de Felix Vallotton, 1884

Já nos anos 80, com a sua coleção de vídeos para fortalecer abdominais, coxas e glúteos (ou buns, como lhe chamava), Jane Fonda parecia avisar que o rabo podia ser o caminho. Ela ou as cuecas super-cavadas que se usavam na data e que na verdade evidenciavam mais as coxas e alongavam as pernas do que valorizavam o rabo, muito coberto, pelo menos acima dos trópicos — no Brasil, um biquíni cavado sempre foi qualquer coisa de mais reveladora. Mas bem-vinda aos anos 2000, Jane, e às aulas de Blaya. No Pack Five Bundas, a bailarina membro dos Buraka Som Sistema dá aulas particulares a cinco pessoas de cada vez e o grande foco é… bom, não vale a pena repetir.

Para lá das calças de ganga que prometem fazer um efeito push up e da cirurgia estética segura para reabilitar e insuflar um rabo, há um mundo a acontecer na internet e, em especial, em caves insalubres dos Estados Unidos. Para o seu livro, Hanson tentou contactar alguns dos utilizadores de fóruns sobre o corpo que afirmavam fazer injeções de hidrogel (na realidade, silicone industrial) nos glúteos de quem pagasse entre 100 a 200 euros. As utilizadoras pediam ajuda desesperada por não terem um rabo. Nos casos mais extremos estas intervenções levavam à morte.

O rabo como traço erótico indispensável está maioritariamente associado à mulher: Hanson não levanta sequer a hipótese de analisar este tema no masculino, e numa pesquisa rápida pela internet encontram-se poucas discussões do rabo associadas ao homem. A fotografia de Justin Bieber nu num barco (entretanto retirada do Instagram) é um oásis no deserto. Encontra-se a página Guy’s Butt & Other Hot Things e os seus conteúdos são maioritariamente homoeróticos.

Às mulheres, valha-lhes Vénus Calipígia, a deusa grega que está sempre, distraída e angelicamente, a mostrar o rabo.

Vénus Calipígia. Fonte: Wikipédia