Aquilo já durava há horas, horas e mais horas. Dois senhores russos estavam sentados frente-a-frente e exasperavam, coçavam a cabeça, suavam, puxavam por todo e qualquer neurónio que ainda desse para pensar. Estavam em Moscovo e parecia que não havia maneira de saírem dali. Há cinco meses que Anatoly Karpov, dono da mente que melhor pensava no mundo um jogo de xadrez, dividia um tabuleiro com Garry Kasparov, o miúdo que tentava provar que todo o reinado tem um fim. As regras diziam que o duelo só acabaria quando alguém ganhasse seis jogos, mas estava difícil. Tanto que, ao 48.º encontro, Florencio Campomanes resolveu parar com aquilo.

Este senhor filipino pode fazê-lo pois, na altura, era o presidente da Federação Internacional de Xadrez (a FIDE) e achou por bem obrigar os russos a descansar — mesmo que ambos não o quisessem. Nem Anatoly Karpov, que entre novembro de 1984 e fevereiro de 1985 ficou com menos 10 quilos de peso e com muitos mais cabelos brancos, como Kasparov. Campomanes justificou a decisão como um bem para a saúde dos jogadores, contudo, a verdade é que nem ele esperava que o título mundial se resolvesse tão cedo: Karpov estava a vencer po 5-3, sim, mas chegaram a ver-se 17 empates consecutivos.

Que canseira, não é? “Os jornais até já desenhavam caricaturas de dois esqueletos a jogarem xadrez. 48 jogos já davam para duas decisões de títulos mundiais. O Anatoly foi o primeiro a protestar, e só depois é que o Garry se levantou e também criticou a decisão. Até aí estava calado, acho que os dois até se riram quando anunciei que ia suspender o jogo”, chegou a dizer Campomanes, anos mais tarde. Garry Kasparov, também muitas primaveras depois, escreveu em livro que tudo se deveu à vontade do Kremlin, que pretendia manter o título na posse de Karpov.

Foi por culpa desta história que Garry Kasparov, depois de muito refilar e se insurgir contra a decisão, teve direito a uma desforra. A 9 de novembro de 1985 os dois russos voltaram a sentar-se à mesa na capital russa, desta vez com regras diferentes, não fosse a habilidade mental de ambos tecer outra maratona de xadrez — agora seria à melhor de 24 jogos e, em caso de empate (12-12), o título permaneceria no bolso de Karpov. Isso não aconteceu porque, no último encontro da final, Kasparov recorreu a uma defesa siciliana (uma famosa jogada de xadrez para quem fica com as peças negras e tem de defender) e tornou-se campeão mundial.

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O russo tinha 22 anos e, na altura, passou a ser o mais jovem de sempre a chegar ao título. Foi obra e cumprem-se esta segunda-feira três décadas desde que Garry Kasparov a conseguiu. O russo deu companhia a este feito, já que recheou a carreira de vários recordes que ainda hoje lhe pertencem. Kasparov parou de jogar xadrez profissionalmente em 2005 e, até o fazer, passou 20 anos a liderar o ranking mundial. Pelo meio foi capaz de conquistar 15 torneios do circuito e de ser eleito por 11 vezes o melhor xadrezista do planeta. “Espero simplesmente ser recordado. Hoje recebo cartas de fãs e fico muito contente, porque se algo correr mal, ao menos serei lembrado como um jogador muito bom que fez algo de bom pelo xadrez”, confessou, pouco depois de se retirar. Esta parte do “se algo corre mal” tem razão de ser devido à vida que escolheu ter para lá do xadrez.

Garry Kasparov sempre foi e é um opositor de Vladimir Putin. O russo é hoje um orador que viaja pelo mundo a desmultiplicar-se em palestras e conferências nas quais critica o homem forte de Moscovo e o cerco que o vê realizar à democracia no seu país. Em 1990 chegou a recusar participar no Campeonato do Mundo de xadrez em representação da União Soviética, vincando o apoio a Boris Ieltsin, o amigo que se seria o primeiro homem a presidir à Federação da Rússia após o desmembramento da URSS. Kasparov vive em Manhattan, bairro de Nova Iorque, nos EUA, mas em 2007 chegou a ser preso por liderar um protesto anti-Putin em Moscovo. Também se dedica à escrita de livros sobre estratégia e tomada de decisões. Mas tudo começou no xadrez.

Após chegar ao trono do jogo de tabuleiro, o russo protagonizou outro momento que a história do xadrez guardará para sempre — foi a primeira pessoa a defrontar computadores. Em 1989 apanhou um avião para Hamburgo, onde venceu a 32 pedaços de informática ao mesmo tempo. Mas o terceiro duelo que teve com um computador foi o mais polémico, porque Garry Kasparov perdeu um jogo. O jogador informático chamava-se Deep Blue, foi construído pela IBM e derrotou o russo (fevereiro de 1996) no primeiro parcial do encontro, embora Kasparov tenha vencido a contenda por 4-2.

Mas o russo sempre criticou o duelo, dizendo que houve batota da IBM e que, algures durante o jogo — que foi tema do documentário “Game Over“, produzido em 2003 — que perdeu, houve intervenção humana para dar uma ajuda à inteligência artificial da máquina. “Foi um dia triste para o xadrez. Cientificamente falando, o jogo foi uma farsa. A IBM não revelou provas em contrário, pois se eu digo que houve intervenção humana então eles tinham que mostrar provas que reproduzissem as jogadas”, argumentou Kasparov.

(Magnus Carlsen tinha 13 anos quando defrontou Garry Kasparov pela primeira vez. Conseguiu empatar.)

Ver hoje o russo à frente de um tabuleiro e a puxar pela cabeça é coisa rara, que apenas acontece em jogos de exibição. Ocasiões especiais, portanto. Em 2009, contudo, chegou a treinar Magnus Carlsen durante alguns meses até o norueguês se tornar no mais novo (19 anos) xadrezista a chegar à liderança do ranking mundial da FIDE e, em 2013, sagrar-se campeão do mundo. Bateu estes dois recordes de Garry Kasparov e o russo acha que, hoje, seria impossível derrotar o miúdo que manda no xadrez mundial. “Tenho as capacidades para lhe ganhar, mas não é possível”, resumiu há pouco mais de dois anos, quando estava sentado à mesa sem xadrez, mas com comida à frente, num restaurante nova-iorquino.

A companhia de mesa era Pep Guardiola e o episódio é narrado em “Herr Pep“, livro escrito por quem andou (Martí Perarnau) atrás do treinador catalão de futebol durante um ano. “Se fosse apenas uma partida e durasse duas horas, Garry poderia vencê-lo. Mas não é assim: o jogo duraria umas cinco ou seis horas e o Garry não quereria passar outra vez pelo sofrimento de estar tantas horas seguidas com o cérebro no máximo, a calcular possibilidade sem descanso. O Carlsen é jovem e não é consciente do desgaste que isto implica. Um conseguiria estar concentrado durante cinco horas e o outro apenas duas”, explicou, na altura, Daria Kasparov, mulher do ex-xadrezista que também estava à mesa. “O Garry não quereria voltar a passar pelo mesmo durante dias e dias”, acrescentou.

Como se passou no tal jogo do título que foi suspenso e deu origem a outro, o de 9 de novembro de 1985. Foi há 30 anos.