Quem entre no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian para compreensivelmente se demorar diante dos quadros dos Delaunay, de Amadeo, Viana e Almada — pois cada oportunidade de revê-los é sempre um encantamento (alguns destes vieram de longe, outros saíram de cofres a que voltarão em breve) —, deve olhar para o relógio de vez em quando, para não perder a exposição no piso inferior, “Hein Semke: um alemão em Lisboa”. Se o casal de pintores exilados em Vila do Conde, em 1915, são uma das grandes influências do melhor que por cá então e logo depois se fez, e um século volvido os seus desenhos e pinturas conservam ainda uma indefectível sedução, a presença de Semke entre nós também não foi de somenos. De certa maneira, pode até dizer-se que Hein Semke esteve para o meio artístico de Lisboa como Ilse Losa, outra exilada alemã, esteve para o Porto em termos literários. A própria Gulbenkian, de que ele foi várias vezes bolseiro ocasional, dedicou-lhe em 1972 uma retrospectiva de “quarenta anos de actividade em Portugal”.

A vida deste hamburguês nascido em Junho de 1899, filho de um serralheiro e de uma costureira, voluntário na primeira guerra mundial, anarquista convicto (esteve seis anos em prisão solitária) que sonhou ser domador de ursos brancos num circo, a sua vinda e fixação no nosso país parecem coisa de romance. Numa primeira viagem aventurosa, chega a Lisboa e vai trabalhar para uma fábrica de tecidos em Chelas. No ano seguinte volta à Alemanha com sarilhos nos pulmões, que o incapacitam definitivamente para o trabalho pesado, e decide estudar artes. Os seus primeiros ensaios de escultura, cerâmica e desenho figurativo merecem as melhores notas de toda a escola, da qual se transfere, por reincidentes problemas de saúde, para uma academia em Estugarda, cidade de clima menos rude onde expõe pela primeira vez.

Mas na Alemanha de 1932 já se prenunciava o nacional-socialismo de Hitler, e Semke volta de imediato a Portugal, instalando-se em Linda-a-Pastora com Martha Ziegler, sua primeira esposa, que aliás conhecera em Lisboa, anos antes. Nessa aldeia dos arredores da capital residem outros alemães, formando uma pequena comunidade antroposófica. Esta casa no campo tornar-se-ia desde então e até 1949 ponto de convívio de artistas e escritores, de Diogo de Macedo a Carlos Queiroz, de Vieira da Silva a Bernardo Marques, de Jorge Barradas a Carlos Botelho, amizades criadas na Brasileira do Chiado e nas exposições em que participou, por exemplo em 1933, na vanguardíssima Galeria UP, de António Pedro, no Clube Alemão, com Fred Kradolfer, Mário Eloy e Almada, ou nas anuais exposições de arte moderna do SPN.

Mas foi sem dúvida o tríptico escultórico criado em 1934-35 para o pátio de honra dos luso-alemães mortos na guerra de 1914-18, na Igreja Evangélica alemã de Lisboa (na Avenida Columbano Bordalo Pinheiro), a colocar Semke na história da arte em Portugal, não apenas pelo talento do trabalho artístico — “A Dor” é uma obra-prima —, como pela controvérsia criada por sectores da colónia germânica, a quem não agradou o acento colocado nos vencidos e na derrota por um pacifista convicto que um dia escreveu que “a guerra e a instituição militar desumanas aniquilam deliberadamente a humanidade de forma sistemática. O soldado e a guerra são monstros”.

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Semke também deu um considerável impulso à cerâmica contemporânea portuguesa, sendo habitualmente equiparado a Jorge Barradas no processo da sua tardia legitimidade artística. Neste campo, a sua obra é imensa e muito variada. Numa primeira exposição, em Maio de 1947, apresenta 150 trabalhos que recebem elogios de José Leitão de Barros no Século. Trabalha com “fogo aberto”, uma técnica de desafiante imprevisibilidade cromática, e escreve sobre a renovação desta arte decorativa. Vai ainda mais longe ao aliar-se a Hansi Staël, directora artística da fábrica SECLA, que teve papel central nessa modernização, e colabora com os arquitectos João Andersen, Porfírio Pardal Monteiro e Jorge Chaves, para quem concebe painéis cerâmicos de grande dimensão, respectivamente para duas residências de Carlos Lino Gaspar, em Caxias (1955) e na Figueira da Foz (1957), o salão de inverno do Hotel Ritz, Lisboa (1958), e o Hotel da Baleeira, Sagres (1962). “Cristo dos Pobres”, inspirado num tema bíblico e produzido com remanescências deste último trabalho, foi instalado na Casa-Museu João Soares, em Cortes (Leiria). Outros “restos de obra” permitem-lhe composições de apreciável gosto e modernidade decorativa, mais acessíveis às classes médias.

O contacto intenso com pó de vidrados provoca-lhe silicose, e uma vez mais uma doença pulmonar impele-o para uma mudança de rumo, em 1962. Avança então para monotipias, xilogravuras e, pouco depois, para telas e colagens escultóricas sobre madeira pintada, como o extraordinário “Torso Verde” (1968), toda uma panóplia de meios e formatos que Semke combina na criação de um elevado número de “livros de artista”, alguns deles enormes, em que junta ilustrações e escritos diarísticos ou memorialísticos. Uma actividade criativa verdadeiramente transbordante, quase imparável, num artista plástico afinal septuagenário, que nunca parou de inquietar-se, demonstrando, como referiu João Pinharanda em 1997, uma “infinita capacidade” de reciclar formas, materiais e temas. Mas sobretudo, ainda e sempre, uma pesquisa de formas e símbolos da humanidade na arte, que muito antes o moviam em longas viagens de mota para visitar e estudar catedrais góticas e românicas e as figurações medievais de rostos humanos. A máscara-retrato sempre lhe interessou muito (“A coragem de ser rosto” é precisamente o título de um livro de referência sobre a sua obra), face a face com o sentido religioso da vida.

Espólio doado

Aos 78 anos, cumpre um sonho antigo, que as vicissitudes do século e outras nunca lhe haviam permitido: visitar o Museu Edvard Munch em Oslo, e percorrer de novo as ilhas Lofoten, às quais dedica — de memória — vinte pinturas de considerável dimensão, e surpreendente cromatismo. As grandes massas geológicas dessas paisagens insulares da Noruega inspiram-lhe então uma série de pequenas esculturas em bronze a que chama estudos para grandes formas, cuja graciosidade e leveza parecem criações de um jovem pintor. Essa surpreendente frescura artística fica, aliás, perfeitamente demonstrada nas oito belíssimas monotopias escolhidas para uma parede da cafetaria do CAM, que dir-se-ia terem sido feitas ontem e estarem ainda frescas de tinta…

Não basta sublinhar o interesse desta exposição. É preciso elogiar — elogiar infinitivamente! — a “excepcional” (sic) doação do espólio que lhe serve de base, um impressionante conjunto de cerca de mil obras, além do arquivo e biblioteca pessoais, agora à guarda da Biblioteca de Arte da Fundação. O gesto de Teresa Balté, 73, esposa e herdeira do artista alemão, é raro mas é sobretudo um gesto lúcido e generoso, que permitiu a uma equipa coordenada pela curadora Ana Vasconcelos preparar esta exposição, produzindo ao mesmo tempo um livro-catálogo (172 áginas, 50 €) que é também já um primeiro exercício de estudo desse espólio e um avanço substancial na própria bibliografia dedicada a Hein Semke. Os ensaios de Ana Vasconcelos, Nina Blum de Almeida, Isabel Lopes Cardoso e Patrícia Nóbrega, além da gratificante densidade informativa, foram escritos ou editados com uma clareza, sobriedade e elegância que não é nada habitual em publicações deste tipo (em que o evereste do ininteligível parece ser o sucesso pretendido pelos críticos), e o próprio trabalho do designer gráfico Pedro Falcão merece rasgados elogios. Em complemento de tudo isto, que é óptimo, a editora Abysmo publicará no início do próximo ano uma tradução dos Diários do escultor, escritos na década de 1950, numa edição também apoiada pela Fundação Gulbenkian.

O círculo Delaunay não ofusca o cometa Semke.