Os factos são estes: até setembro, o défice nacional situou-se nos 3,7% do PIB, bem longe dos 2,7% estipulados pelo Governo e dos 3% exigidos por Bruxelas. Segundo a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), o anterior Governo gastou 278 milhões de euros das verbas inscritas como dotação provisional para pagar salários nos ministérios da Educação e da Justiça, sendo esse valor bastante superior ao que anualmente é incluído nessa almofada orçamental. Resultado: a verba já gasta em 2015 é muito maior do que se esperava, e ainda falta um mês para o fim do ano (sobram apenas 62 milhões para gastar em dezembro). Ou seja, o novo Governo entra no seu primeiro mês em funções quase sem almofadas orçamentais, o que dificulta o cumprimento da meta dos 3% de défice que foi prometido em Bruxelas e com que António Costa já se comprometeu.

Mas as visões dos vários partidos sobre os novos dados são bastante diferentes, e até contraditórias. Se a direita afirma que, se o novo Governo “mantiver o rigor” as metas são “perfeitamente possíveis”, a esquerda sublinha que os dados da execução orçamental referem-se aos 11 meses do ano que já passou, logo, aos 11 meses do ano em que o país foi governado pelo Executivo de Passos Coelho e Paulo Portas, acusando-os de terem ocultado despesa intencionalmente. E alegam que o facto de o anterior Governo ter gasto em novembro já um terço da almofada financeira dificulta a atuação do novo Executivo. Mas vamos por partes.

PSD e CDS acham possível cumprir, basta manter o rigor. Culpa dos gastos da “almofada” é dos professores

Para o PSD, o cumprimento da meta do défice (menos de 3%) é exigente mas ainda é possível nos menos de 30 dias que restam até ao fim do mês, uma vez que a “trajetória do défice tem sido sempre positiva”, passando dos 4,7% para 3,7% (até outubro), tornando possível, por isso, que em dezembro desça dos 3%. Segundo o deputado Duarte Pacheco, que falou aos jornalistas em reação ao relatório da UTAO, a ideia é simples: “É um comboio que está em andamento, para o Governo alcançar a meta basta que mantenha o ritmo para não descarrilar”.

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Ou seja, como os últimos meses do ano até representam mais ganhos para o Estado, porque a receita fiscal aumenta com o pagamento do 13º mês aos pensionistas e trabalhadores do privado (mais IRS), e porque há um aumento dos impostos sobre o consumo, o objetivo do défice continua a ser, para Duarte Pacheco, “verdadeiramente alcançável”.

Mas como gastou o anterior Governo mais do que o esperado das “almofadas orçamentais”? “A dotação provisional existe para ser usada quando é necessária, e geralmente é mais necessária no fim do ano”, explica o deputado Duarte Pacheco, acrescentando que “ainda sobra bastante dinheiro para fazer face a imprevistos”. Mas arrisca uma outra explicação para os elevados gastos de “almofadas” por parte do Ministério da Educação: a fraca adesão dos professores ao programa de rescisões.

De acordo com Duarte Pacheco, na dotação provisional estava inicialmente previsto que “houvesse este ano um conjunto de professores que pudessem beneficiar do programa de rescisões amigáveis, o que faria com que o Estado deixasse de pagar esses salários e fizesse uma poupança de gastos com trabalhadores”. Mas, como isso não se verificou, e como “houve muitos professores que se mantiveram no ativo”, o Estado teve de continuar a fazer face à despesa pagando os salários. 

Duarte Pacheco rejeita ainda que as nomeações de altos dirigentes do Estado, que entretanto foram feitas pelo anterior Governo já em cima do período eleitoral, contribuam para este aumento de gastos com pessoal. “Nomeações já estavam previstas há muito tempo, logo a verba destinada a estas pessoas já estava equacionada”, diz.

Também a deputada centrista Cecília Meireles repetiu o discurso de Duarte Pacheco, sublinhando que é “normal” que nos últimos meses do ano haja maior recurso à dotação provisional e reserva orçamental, mantendo a ideia de que “ainda há margem” e ainda é “possível” o novo Governo alcançar a meta do défice inferior a 3%. Isto, claro, se mantiver o “rigor”. “É um exercício exigente, mas cabe a este Governo acautelar o rigor das contas”, diz.

PS, PCP e BE. “Artimanhas” do anterior Governo, uma saída “suja” e um “castelo de cartas”

Nem todos lêem os avisos da UTAO da mesma maneira, e os partidos da esquerda não hesitam em imputar responsabilidades à execução orçamental do anterior Governo, que era quem estava em funções no período a que os factos dizem respeito. Bloco de Esquerda defende que PSD e CDS estão há dias a pôr a tónica na necessidade de deixar a meta do défice abaixo dos 3% até final do ano porque terem escondido despesa, enquanto o PCP resume tudo a “artimanhas e falsidades” do anterior Executivo. PS fala em saída orçamental “suja”.

“Vai começar a descobrir-se mais artimanhas e falsidades”, disse aos jornalistas o líder parlamentar comunista, João Oliveira, acusando o anterior Governo de ter “ocultado despesa que já sabia que ia ter para sustentar o cenário da meta do défice abaixo dos 3%”. Tratou-se tudo, diz, de “propaganda eleitoral”, tendo o PSD e o CDS “construído um cenário” bem diferente daquele que corresponde à realidade.

“[PSD e CDS] já sabiam que não iam cumprir”, disse o deputado do PCP, que defende que as metas possam até não ser rigorosamente cumpridas se para isso for dada “resposta aos problemas sociais dos portugueses”. “Mas nem isso aconteceu”, diz. Segundo João Oliveira, com os dados em cima da mesa, torna-se agora “praticamente impossível” cumprir a meta do défice de 2,7%.

Já Mariana Mortágua, do BE, fala num “castelo de cartas” que está afinal no lugar da “fortaleza” que PSD e CDS tinham dito ter construído em torno das contas públicas. “PSD e CDS estão à espera que o castelo de cartas caia para dizerem que foi da responsabilidade do novo Governo”, disse, sublinhando que a execução orçamental se refere aos 11 meses do ano em que o Governo da direita esteve em funções. “Se daqui a um ano estivermos aqui a falar da execução orçamental então a culpa será deste novo Governo do PS, mas por agora não é o caso”, diz.

Este episódio dos gastos das “almofadas” orçamentais trata-se, segundo a deputada bloquista, de “mais um” episódio e relação aos últimos que têm surgido a provar que o cenário pintado pelo anterior Governo não corresponde à realidade. Junta-se à sobretaxa de IRS, “que ficou muito aquém”, e ao crescimento económico que afinal está “estagnado” e não a “crescer”, “como diziam”.

Também o PS, pela voz do deputado João Paulo Correia, se mostrou convicto de que as metas “dificilmente serão conseguidas”, falando numa “saída suja” e “intoxicada” do anterior Governo, a quem imputa as culpas pela execução orçamental. “A UTAO é clara e diz que com as almofadas criadas pelo anterior Governo para fazer face aos desvios de receita e despesa dificilmente as metas serão cumpridas em dezembro”.

Durante o debate sobre o programa de Governo, o primeiro-ministro António Costa tinha-se mostrado crente no cumprimento da meta prevista para o défice, ainda que, como sublinhou, só tivesse “29 dias” de responsabilidade para o fazer. A demais responsabilidade é imputada ao anterior Governo, responsável pelos restantes 330 dias do ano.